Menuhin, muito prazer
Audio News, 1995-03-25
Genebra, primavera, início dos anos 70.
Não havia mais entradas para o concerto em benefício da Fundação Lipatti. Os "monstros" anunciados eram o cellista Fournier, a soprano Schwarzkopf, o violinista Yehudi Menuhin e o pianista Magaloff. E eu "precisava" assistir a esse concerto.
"Dando uma de brasileiro", importunei meio mundo genebrino com apêlos, os mais malucos possíveis. Acabei conseguindo o melhor lugar do teatro, ao lado do pianista, como... virador de páginas !
Elocubrei tudo aquilo com que sonha um jovem estudante de música. Com todo direito. Dentro de um ônibus, com o coração batendo forte e vestindo a única melhor roupa, l?fui eu rumo ao impenetrável mundo mágico dos grandes: o mundo das capas de LPs. Logo eu, aquele menino recem saído da Faculdade de Engenharia na Ilha do Fundão, poder conversar com o grande Fournier, com o mito Menuhin e com minha "ídala" Schwarzkopf...
O primeiro a ensaiar foi o Fournier. Não me deu nem bom dia. Tocou, mal por sinal, e foi embora.
Senti a pressão subir quando a deusa chegou. Deu dois beijos no Magaloff e me ignorou. Derrubei a partitura e virei duas páginas ao mesmo tempo ! Apesar disso, ela cantou como um anjo. E desapareceu como uma aparição. Pensei: mas ela pode...
Durante o intervalo, o orgulho decepcionado convidou-me para um caf?solitário. Quem sou eu ? Ser?que estou perdendo o limite entre a fantasia e a realidade ? Quer saber ? Vão todos para o inferno !!
Foi com esse estado de espírito que cheguei atrasado na segunda parte do ensaio. O Menuhin j?tocava e, de costas para o piano, não me viu entrar. Sentei finalmente no meu verdadeiro lugar. O primeiro movimento da Sonata de Enescu chegou ao final. Ao se virar, o mito me olhou com ar de surpresa e partiu em minha direção. Imaginei: agora ele vai me botar teatro afora por eu ter chegado atrasado.
Estendeu a mão e disse:
- "Acho que não fomos apresentados. Yehudi Menuhin, muito prazer".
Emudeci.
- "E voce, como se chama ?"
Foi como se a providência viesse em socorro do meu pobre ego. Os astrólogos certamente diriam que isso aconteceu devido ?"coincidência" de termos nascido no mesmo dia ...
Acho impossível que ele se lembre dessa história. Da mesma maneira que jamais poderei esquec?la.
O Menuhin ?um iluminado.