Artigo
- CDs recuperam obras de compositores brasileiros, interpretadas pelo pianista Arnaldo Estrella
Veja, 1999-10-24
Estrella: concerto de cabeça raspada nos Estados Unidos |
"Arnaldo Estrella e Arthur Rubinstein são os pianistas ideais para minhas obras", afirmou Villa-Lobos, numa época em que Guiomar Novaes e Magdalena Tagliaferro eram as grandes estrelas do teclado brasileiro. "Nem foi à toa que lhe deu a natureza o belo perfil de falcão imperioso", completou o poeta Manuel Bandeira, referindo-se a Estrella. Homem culto, estudou em Paris durante seis anos e, ao voltar ao Brasil, tornou-se um dos melhores professores de piano do país. Conviveu com intelectuais, apresentou várias peças de compositores brasileiros em primeira audição e foi responsável pela formação de ótimos pianistas, entre os quais Antonio Guedes Barbosa e Fernando Lopes. Como camerista, integrou o Quarteto Guanabara, ao lado da mulher, a violinista Mariuccia Jacovino. "Ele era um nacionalista fervoroso e morria de ciúme de mim", brinca Mariuccia, hoje com 86 anos. Comunista não militante, visitou a União Soviética e ficou decepcionado com a falta de respeito que o sistema dispensava aos artistas. Apesar da aparência carrancuda, o mestre se colocava de quatro para que seus netos andassem de cavalinho. Uma vez, antes de um concerto nos Estados Unidos, foi cortar o cabelo. O barbeiro fez-lhe uma pergunta e Estrella, que não falava inglês, respondeu "yes", mesmo sem entender o que ouvira. À noite, tocou de cabeça raspada.
Vida de compositor é dura. A estrada para alcançar o sucesso é geralmente mais longa que a de um performer. Para ser conhecida, uma nova composição depende do interesse de instrumentistas, de editoras, de companhias de gravação e do público. Sem falar na bênção dos críticos. Até a primeira metade do século XX, o autor era também o intérprete de suas próprias obras, prescindindo assim de dois intermediários – o instrumentista e a editora. Os russos Prokofiev e Rachmaninoff foram modelos dessa prática. Com a "síndrome da especialização", o compositor deixou de executar sua música e o intérprete, de compor.
Nos dois CDs do selo Festa, o som seco e as pequenas imperfeições das gravações não impedem o ouvinte de constatar o toque inteligente e sensível de Estrella – que mostra ser um especialista em música brasileira. Suas leituras, corretíssimas do ponto de vista musical mas sem a chatice do academismo, evocam um Brasil ao mesmo tempo elegante e malicioso. Quem ouvir Arnaldo Estrella pela primeira vez poderá confundir seu toque com o do grande pianista chileno Claudio Arrau. A diferença é o "jogo de cintura" do brasileiro.