- Hilary e Jackie apela ao sensacionalismo para narrar a vida de violoncelista clássica
Veja, 1999-05-23
Hilary e Jackie não conta a história de Hillary Clinton nem de Jackie Kennedy. O filme, que estréia nesta semana no Brasil, narra a dramática relação entre as irmãs inglesas Hilary, uma flautista de talento modesto, e Jacqueline du Pré (Jackie), uma violoncelista passional, morta em 1987 de esclerose múltipla. Divulgado como "uma história verdadeira" e lançado nesta semana no Brasil, o filme vem causando indignação no meio musical internacional, que o considera desrespeitoso à memória da musicista.
Iris du Pré, uma pianista sem carreira, fez de tudo para ver as filhas no palco. Jackie triunfou e a invejosa Hilary foi criar galinhas com o marido, no impronunciável vilarejo inglês de Ashmansworth. Jackie morreu jovem, após longo sofrimento, e Hilary tentou exorcizar seus fantasmas, escrevendo em 1997, com o irmão Piers, o livro Um Gênio na Família. Para isso não hesitaram em denegrir a imagem pública de Jackie. Sexo e loucura têm mais apelo do que música clássica, deve ter pensado o roteirista Frank Boyce, responsável pela adaptação do livro para o cinema. Não é coincidência que o momento de maior tensão do filme seja o affair que Jackie tem com o cunhado, com a complacência da própria irmã. Boyce desfere um golpe baixo em Jackie ao omitir, propositadamente, a informação de que, quando o fato aconteceu, ela estava sob forte efeito de remédios e a esclerose múltipla já dava seus primeiros sinais. "Estou chocado com a falta de respeito à memória dessa grande artista, com quem tive o privilégio de trabalhar", declarou o violinista Yehudi Menuhin, falecido neste ano. O pianista Stephen Kovacevich, ex-parceiro musical e amoroso de Jackie, desabafou: "É inaceitável a forma como distorceram sua personalidade". De todas, a reação mais violenta foi a do celista Julian Lloyd Webber, irmão de Andrew, famoso autor de musicais como O Fantasma da Ópera e Cats. "Hilary e Piers acreditam que Jackie arruinou suas vidas e a vingança deles é desacreditá-la, sem que ela possa defender-se. É um caso doentio", atacou Julian.
Caçando com gato – Nascida em 1945, Jacqueline du Pré quase não freqüentou a escola e teve como guru o celista e professor inglês William Pleeth. Aos 20 anos já era conhecida mundialmente e, ainda assim, foi para Moscou aperfeiçoar-se com Mstislav Rostropovich. "Ele era grosseiro e cruel", confidenciou Jackie a um amigo, desmistificando a aura de bonzinho do mestre russo. Carismática e dona de uma personalidade esfuziante, ganhou de um admirador anônimo um violoncelo Stradivarius avaliado em mais de 2 milhões de dólares. O instrumento encontra-se hoje nas mãos do celista americano Yo-Yo Ma. Aos 22 anos, Jackie casou-se com o pianista e regente Daniel Barenboim, mas a felicidade durou pouco. Cinco anos mais tarde, com sua coordenação motora comprometida pela esclerose múltipla, teve de abandonar a carreira. Confinada a uma cadeira de rodas, dedicou-se ocasionalmente ao magistério. Para fazê-la feliz, Barenboim proporcionou-lhe uma última aparição em público. Jackie sentou-se no meio da orquestra, no Royal Albert Hall de Londres, e tocou tambor numa sinfonia de Haydn. Foi a última ovação que recebeu. Isolada pela perda da fala e da audição, morreu aos 42 anos. Entre suas melhores gravações, destacam-se os concertos de Elgar, com a Sinfônica de Londres, regida por sir John Barbirolli, e o de Schumann, dirigido pelo marido Barenboim, ambas para o selo EMI.
Bonito visualmente, o filme Hilary e Jackie só emociona no início, quando as irmãs ainda são crianças. A falta de intimidade do diretor Anand Tucker com o mundo da música é evidente. Durante um concerto, por exemplo, o diretor "faz" a orquestra tocar no escuro. Pela primeira vez na história, uma orquestra toca de memória! Uma pena que a EMI não tenha cedido os direitos das gravações de Jackie. A qualidade musical do filme certamente teria sido superior. Com a recusa do celista Yo-Yo Ma em participar do projeto, Tucker não teve outra opção senão caçar com gato e contratar a discreta violoncelista Caroline Dale para "dublar" a arte de Jacqueline du Pré. A excelente atriz Emily Watson, companheira de infortúnio de Fernanda Montenegro, teria mais chances de ganhar o Oscar se sua "técnica violoncelística" estivesse mais bem sincronizada com a música. Em compensação, a garota Auriol Evans, interpretando Jackie menina, dá um show. O desempenho da australiana Rachel Griffiths é brilhante, especialmente se levarmos em conta a maquiagem de "boazinha" imposta pelo diretor à personalidade de Hilary. Na semana passada, mais um livro foi publicado sobre a vida de Jackie. A autora é a ex-violoncelista inglesa Elizabeth Wilson, que pretende restabelecer a verdade dos acontecimentos. Que verdade? Se, segundo a lei, mortos não têm reputação, difamá-los não é crime. O problema é moral.