- Gravações raras de Sergiu Celibidache, o maestro que não gostava de entrar em estúdio
Veja, 1998-03-15
"O Karajan proporcionou grande prazer à humanidade. A Coca-cola também." A ironia é do maestro romeno Sergiu Celibidache, um dos maiores regentes deste século, morto em 1996 aos 84 anos. Conhecido pelo sarcasmo e pela aversão a microfones, Celibidache permitiu a gravação, sem fins comerciais, de seus concertos à frente da Orquestra Filarmônica de Munique. Com sua morte e a aquiescência da família, a EMI Classics lança onze CDs com algumas dessas performances. Um presente para os amantes da boa música.
Para os herdeiros, a coletânea não é uma violação póstuma das convicções do maestro, que chamava o CD de "música em conserva". Ou pior, "caixão da música". "Ele não deixou nenhuma proibição por escrito, e o resultado das vendas será revertido para duas fundações com fins humanitários", justifica Serge Ioan, cineasta e único filho do regente. Serge acaba de exibir na Europa um documentário sobre o pai, O Jardim de Celibidache, após tê-lo acompanhado com uma câmara nos ombros por dois anos.
A política era a profissão desejada para o jovem Celibidache. Aos 21 anos, o futuro estadista, também versado em matemática e filosofia, fugiu de casa. Nunca mais viu os pais. Em 1945, Wilhelm Furtwängler e Herbert von Karajan, acusados de colaborar com os nazistas, estavam impedidos de reger na Alemanha. O desconhecido Leo Borchard foi então indicado para a direção da Filarmônica de Berlim, uma das melhores orquestras do mundo. Não chegou a assumir. Morreu por engano, baleado por um soldado americano. Melhor para o nosso herói, que foi nomeado para o prestigioso conjunto, com o qual fez 414 apresentações até 1954. Sua difícil personalidade, aliada à relutância em gravar, provocou a ruptura final com os Berliner. O ambicioso Karajan, já liberado para reger na Alemanha, assumiu o pódio da Filarmônica. Celibidache passou a atuar em todo o globo e somente em 1979 aceitou novamente a liderança de uma orquestra — a Filarmônica de Munique. Essa forte parceria durou até sua morte.
Adepto do zen-budismo, o mestre ia ao Tibete com freqüência. A música era sua linha direta para o cosmos. "Pensar não tem nada a ver com existir", filosofava. Procurava não se fixar em experiências passadas. "Na música, como na vida, nunca se deve repetir a mesma frase da mesma maneira. É como uma moça perder a virgindade duas vezes." Seu lado criança aflorava quando, com amigos, organizava concursos para ver quem comia mais. Era fã de Mike Tyson e de futebol.
O maestro foi um artesão da cor e o repertório impressionista lhe cai como uma luva. Sua versão de La Mer, do francês Claude Debussy, é extraordinária. A música torna-se matéria, como um oceano de cores e sons. O Bolero de Ravel, muito lento e entrecortado por alguns ataques de tosse do público, é a exceção à regra. Caso o leitor, por motivos orçamentários, só possa comprar um CD da coleção, a Sinfonia N° 6 de Tchaikovsky, a Patética é a melhor escolha. Celibidache e a excelente Filarmônica de Munique dão um show. Para ouvir de olhos fechados.
"Jaula do leão" — Muito rigoroso, inspirava medo a ponto de seu camarim ser chamado de "a jaula do leão", onde somente amigos e beldades tinham privilégios. O alemão Klaus Umbach, no livro Celibidache, der andere Maestro ("o maestro diferente"), transcreve deliciosas citações atribuídas ao irreverente músico. Dono de grande senso de humor, não poupou o colega americano Lorin Maazel, a quem definiu como "uma criança de 2 anos teorizando sobre Kant". Riccardo Muti? "Um extraordinário talento, mas ignorante como Toscanini." Admirava poucos, como Furtwängler, de quem foi grande amigo, e o fantástico pianista Arturo Benedetti Michelangeli.
Com diversos títulos honoris causa e condecorações, Celi, como era chamado pelos amigos, dedicou-se aos jovens. Não cobrava pelas lições e ainda alimentava a turma. Ensinava que o compositor alemão Richard Wagner executava seu Idílio de Siegfried em 25 minutos. "A gazela nórdica dirige em dezesseis, disparava o professor, referindo-se ao holandês Bernard Haitink. Numa rara incursão pela regência, o pianista canadense Glenn Gould surpreendeu, gravando o mesmo Idílio em 24 minutos. Gould chegava assim mais perto da "verdade" do que o próprio Celibidache, cujo Idílio não passa dos 23.
Em música, a diferença entre ritmo e pulsação é fundamental. O ritmo é mecânico e a pulsação, humana — como o coração. A taquicardia pode ser imprescindível para transmitir uma emoção. Bach jamais escreveu indicações de andamento, por achar que cada intérprete deveria intuir o tempo "correto". Esse conceito era a religião de Celibidache. Na conhecida Sinfonia N° 40 de Mozart, o ouvinte poderá perceber a pulsação de um coração latino sempre guiado por uma mente germânica. Obcecado pela perfeição, o velho Celi podia exigir mais de dez ensaios para um único concerto. "Não existem más orquestras, somente maus maestros", diria o compositor austríaco Gustav Mahler. Isso porque ele nunca regeu a Filarmônica do Exército da Salvação, FES.
Com todo o respeito.
Boca do inferno
A opinião de Sergiu Celibidache sobre estrelas da música erudita
Arturo Toscanini — "Lutarei contra as suas idéias até perder a última gota de meu sangue."
Jessye Norman — "Uma girafa com uma imensa voz e sem nenhuma cultura. Ela não canta, ela grita."
Claudio Abbado — "Sem comida, sobrevivo três semanas. Ouvi-lo por três horas me causaria um infarto."
Georg Solti — "Um bom pianista com péssimo ouvido. Como regente, não tem técnica suficiente."
Herbert von Karajan — "Ele rege como se estivesse batendo maionese."