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- Cecilia Bartoli grava Vivaldi e mostra por que é a grande sensação do mundo lírico
Veja, 1999-12-12
Cecilia: ela estudou trompete e dança flamenca antes de se dedicar à ópera |
Num piscar de olhos, o nome Cecilia Bartoli faz esgotar a lotação de qualquer teatro do planeta. Sua voz é um instrumento que parece ter coração e sua técnica privilegiada é usada como simples ferramenta para servir à música. Cecilia, que nasceu em Roma e tem 33 anos, não faz concessões musicais e é mais que uma cantora. É uma musicista. Pessoalmente, ela não é tão bonita como mostram as fotos distribuídas por sua assessoria, porém, se comparada à soprano Jessie Norman, é uma deusa grega. Como boa italiana, fala com as mãos. É inteligente e sabe ser doce ao dizer "não", qualidade difícil de ser encontrada nas divas. Recentemente recusou um convite para cantar com a Orquestra Filarmônica de Berlim, na virada do milênio. "Você não vai acreditar, mas foi por causa da minha avó. Ela me disse que um momento como esse deveria ser passado em família", explicou Cecilia, em entrevista exclusiva concedida a VEJA há duas semanas. A cantora vive numa vila em Montecarlo, com seu cachorro, "Figaro". Sempre que pode, vai a Roma visitar a irmã e a mãe, Silvana Bazzoni, única professora que teve. "Passo também algum tempo com meu namorado", diz, referindo-se a Claudio Osele, misto de musicólogo e administrador de vinícola. Cecilia estudou trompete e dança flamenca, mas foi somente aos 17 anos que decidiu estudar música seriamente. Sua carreira decolou após cantar, em Paris, a ópera La Cenerentola (A Cinderela) , de Rossini.
Como sempre, a inveja tenta minimizar o sucesso. "Se ela não cantar o feijão-com-arroz do repertório lírico, jamais será uma megaestrela", disparou há pouco tempo Herbert Breslin, empresário do tenor Luciano Pavarotti. "Não me vejo cantando numa Copa do Mundo", responde Cecilia, alegando falta de qualidade sonora em espetáculos ao ar livre. "Além disso, canto músicas adequadas à minha voz e personalidade." Sua voz não é do tipo megafone, como muitos preferem, mas delicada e sofisticada. "O importante não é o volume, mas a qualidade", completa. Muitos puristas se sentem ofendidos com a forma extrovertida com que Cecilia interpreta o repertório do século XVIII. Ela contra-ataca argumentando que "a fidelidade do intérprete ao compositor reside em sua própria sinceridade". E explica que "temos de considerar a época em que a música foi escrita. Olhe para um Piranesi ou Canaletto, que viveram nesse período cheio de idéias. Isso está traduzido na música e é assim que eu devo e gosto de cantar".
Na música, os castrati surgiram no século XVI como resultado da expulsão das mulheres dos palcos e coros decretada pela Igreja. Atingiram o apogeu nos séculos XVII e XVIII. Ganhavam fortunas e eram uma espécie de Michael Jackson da época. Foram fundamentais no desenvolvimento e popularização da ópera italiana, quando a maioria dos cantores era castrada. Um dos mais ilustres foi o napolitano Carlo Broschi (1705-1782), conhecido como Farinelli, que foi castrado aos 7 anos por um barbeiro. Sua história dramática é contada no filme Farinelli (1994), do cineasta Gérard Corbiau, já exibido no Brasil. A ilusão de um futuro brilhante incitava os pobres a essa prática, mas eram poucos os que chegavam à fama. Registros da época dão conta de que Farinelli era capaz de sustentar uma nota por mais de um minuto sem respirar. Em 1878, dez anos antes da abolição da escravatura no Brasil, o papa Leão XIII extinguiu a castração. O último dos castrati de que se tem notícia foi Alessandro Moreschi, que cantava na Capela Papal e morreu em 1922. Já idoso, gravou uma ária que constitui hoje o único registro do verdadeiro som produzido por um castrato.
Sabe-se pouco da infância de Antonio Vivaldi (1678-1741). Em 1703, foi ordenado padre e trabalhou como professor de violino e compositor no Ospedale della Pietà, em Veneza, instituição que era, na verdade, um orfanato para filhas bastardas de nobres. "Il Prete Rosso" (O Padre Ruivo) - como era chamado devido à cor dos cabelos - tinha fama de sovina e era seu próprio empresário. Em Mântua, conheceu a cantora Anna Giraud, com quem viveu até morrer. Se como amantes ou como amigos, ninguém sabe. Em 1740, Vivaldi pediu demissão do Ospedale e foi para Viena, onde morreu. Foi enterrado numa vala comum, como Mozart cinquenta anos mais tarde. "Vivaldi era um chato. Compôs a mesma melodia 500 vezes", ironizou o compositor russo Igor Stravinsky. Poucos compreederam que a música de Vivaldi nunca se propôs a representar a natureza, mas sim usá-la como metáfora para expressar paixões e sofrimentos humanos. Apesar de As Quatro Estações ocupar hoje o primeiro lugar nas paradas de sucesso eruditas, Vivaldi era mais conhecido em sua época pela produção operística, na qual os castrati desempenhavam um papel de grande importância.
"A prática da castração produzia uma voz adulta de extraordinária potência e, por ser homens, os castrati possuíam uma capacidade pulmonar quase desumana", diz Cecilia Bartoli, ao explicar um dos maiores desafios de seu CD, lançado pela gravadora Decca. O compositor certamente não imaginaria que sua música sobrevivesse por tanto tempo. Os manuscritos, depois de descobertos na década de 20, foram comprados pela Biblioteca Nacional, em Turim. Acompanhada pela excelente orquestra Il Giardino Armonico e instrumentos de época, a coloratura e a energia da meio-soprano geram uma alta voltagem musical. Em sua voz, ouvem-se lágrimas e sorrisos. A ária "Gelido in Ogni Vena", com uma citação ao "Inverno", de As Quatro Estações, é o ponto culminante do disco, em que Vivaldi retrata o sofrimento de um pai diante do túmulo do filho. Uma emocionante viagem ao passado, pelo preço de um CD.