Atletas, pernetas, ovos e omeletes
Cartas de Londres, 2000-07-17
Belmira querida,
Desculpe-me pela demora em escrever. A vida não tem sido nada fácil. Na semana passada, dei um concerto no Wigmore Hall, aqui em Londres, que me tirou do sério. Como diria a Dilma, aquela sua antiga cozinheira, eu estava com o "sistema nervoso". E bota nervoso nisso. Você e minha mãe, é claro, acham que tiro tudo de letra. A verdade não é bem essa. Sinto que grande parte dessa ansiedade é fruto do imprevisível e terrível encontro marcado com a inspiração. E se ela não aparecer?
Que profissão mais terrível, essa minha. Você já pensou que, para sobreviver, eu tenho de mexer os dedos? E sentar-me diante de um móvel preto, dedilhando um teclado alvi-negro, que aciona martelinhos, que por sua vez, percutem arames esticados, produzindo um ruído estranho, chamado de "música"? Entro num palco como uma ave esfenisciforme, ou seja, fantasiado de pingüim e, ao fim de cada musiquinha, o público, batendo uma mão contra a outra, expressa sua apreciação. E ainda paga para ver essa maluquice. Que inveja eu tenho dos compositores, pintores e todos os "ores", que só precisam mostrar seus trabalhos depois de terminados. É bem verdade que eles também não podem usar o "momento da criação" como álibi para suas eventuais imperfeições.
Belmira, sei que não devo ligar para a crítica. Aliás, sua última carta estava muito divertida. Ri muito com a definição de crítico, "aquele perneta que ensina um atleta a correr mais rápido". Você conhece a resposta deles? "Para criticar um omelete, você não tem de ser, necessariamente, capaz de botar um ovo". Não é ótima? Você sabia que Brahms, traumatizado pela crítica negativa de seu primeiro concerto para piano e orquestra, levou vinte anos para escrever o segundo concerto? Imagine, Belmira, se não fosse por esse cretino, poderíamos ter, talvez, em vez de dois, cinco concertos para piano e orquestra. Definitivamente, o código penal precisa
ser revisto.
Falando em crítica, no sábado passado, o russo Evgeny Kissin, considerado o melhor pianista do mundo, levou uma tremenda paulada do "The Times", depois de tocar na inauguração dos "Proms" – os famosos Promenade Concerts, realizados no Albert Hall. O curioso é que, nesses concertos, as poltronas da platéia são removidas para que as pessoas possam passear durante o espetáculo. Nunca entendi a razão disso. Quem sabe, porque ninguém consegue ficar parado tanto tempo ouvindo música clássica... Como eu ia dizendo, o crítico do "The Times", um tal de Richard Morrison, escreveu que "infelizmente, Kissin deu dois bises, em vez de um. Tocou magnificamente, mas seu egocentrismo foi ultrajante, tratando-se da primeira noite dos Proms". Coitados dos dois. Do Kissin e do crítico.
Belmira, ao contrário do brasileiro, o inglês tem alergia ao sucesso. Por estas bandas, o segundo lugar é o máximo que uma pessoa de bem deve almejar. Se o primeiro for inevitável, que haja discrição. Ostentar, jamais. Por isso, há oito anos uso o mesmo paletó para dar aulas no Royal College. Na única vez em que decidi variar e vestir uma outra jaqueta, fui eleito o professor mais elegante da Universidade.
Depois do concerto da semana passada, fiquei emocionalmente desidratado. Vou tentar pegar a sessão das seis e ver Missão Impossível II, apesar de odiar o Tom Cruise. Talvez o remédio amargo funcione como antídoto e, assim, eu consiga voltar novamente à monotonia da excitação. Ah, esqueci de comentar a matéria de meia página sobre São Paulo, publicada no "Herald Tribune" da semana passada. Eles dão a maior cacetada na cidade, dizendo que seus principais problemas são a falta d'água, segurança, educação, saneamento e desemprego. O resto está ótimo. Belmira, você tem sorte de morar no Rio...
Inté e beijo do
Arnaldo
PS. Assim que sair a crítica do meu concerto, eu escrevo. Se for ruim, é claro.