Cartas de Londres, 2000-11-21
Belmira querida,
Cá estou eu novamente em Londres, às vésperas de mais um longo e tenebroso inverno. Alguns amigos ingleses acham que sou louco por ter preferido viver na Europa, quando poderia ter optado pelo sol e pelas maravilhas de nossa pátria amada. Eles têm uma certa razão. Mas só certa. A escolha pelo frio e pela chuva traz compensações. Belmira, abro a porta de minha casa e estou na calçada, ou na guia, como dizem os paulistas, sem o perigo de topar com assaltantes de plantão. Bato na madeira. De bônus, entre "otras cositas más", o usufruto de uma vida cultural de primeira e a convivência com um povo educado. Tudo isso num sistema economicamente estável. Acho que me convenci. Longe da praia e do bate-papo com amigos, produzo mais e consigo estudar melhor. Quando meu filho Gabriel era criança, costumava mostrar-lhe a beleza das diversas tonalidades das nuvens inglesas. Era uma forma de eu me convencer de que viver aqui não era tão ruim.
Querida, o céu de Sua Majestade está longe de ser azul anil, mas posso garantir que o inverno vale a pena. Nem que seja pela chegada da primavera, quando até os velhinhos do parque rejuvenescem, como se fossem coadjuvantes de um processo mágico de renascimento. Sei que estou parecendo aquele louco, que bate furiosamente a cabeça contra a parede, só para poder sentir um alívio gostoso ao interromper o flagelo. Sem estações do ano definidas, perde-se a noção do tempo. As pessoas envelhecem de repente. Há quem defenda a idéia de que é exatamente por isso que as pessoas envelhecem precocemente. E você, o que acha?
Belmira, enquanto escrevo, chove torrencialmente. Na verdade, não tenho do que reclamar, pois a vida tem sido extremamente generosa comigo. Falando em generosidade, acabo de passar dezoito dias em Varsóvia, Polônia, como jurado do Concurso Frédéric Chopin. Belmira, como ex-professora de piano, você deve saber que esse é um dos mais importantes concursos do mundo e que só se realiza de cinco em cinco anos. Participar da banca examinadora, ao lado de 21 personalidades do mundo acadêmico, com idade média de 75 anos, foi uma experiência fascinante. Belmira, acredite, eu era o caçula da "tchurma", seguido de Martha Argerich.
Ouvimos um total de 154 performances, executadas durante quatro provas por 98 jovens pianistas. Haja amor pela música para agüentar um rojão desses! Confesso que, se não fosse o humor, eu não teria agüentado. Antes do início do concurso, o presidente do júri convocou os jurados para uma reunião e, entre muitos assuntos, fez um alerta: "tenham cuidado, pois seremos foco de atenção de todos, especialmente das câmeras de TV. Caso um colega, vizinho de vocês, caia no sono, acorde-o com todo cuidado". Só faltou pedir que o despertássemos "con amore". Foi uma risada geral. Achei até que o humor polonês não era dos piores. Mas ele falava seriamente, Belmira. E estava certo. Durante os dezoito dias do concurso, houve de tudo: de roncos a professores caindo da cadeira. Outra história inacreditável envolveu um dos jurados, que pagou um tremendo "mico" por seu hábito de falar sozinho. Certa tarde, ao caminhar pelos bastidores do teatro, o professor avistou os técnicos de uma equipe de TV que trabalhavam nos preparativos de uma transmissão. "Ótimo, estou pronto para dar a entrevista. Aliás, sou ótimo em entrevistas", proclamou, em voz altíssima, para ele mesmo. Ignorado pelos técnicos, o respeitadíssimo professor disfarçou, deu meia-volta e saiu discretamente. "Tudo bem, se vocês não podem agora, fica para a próxima", monologou.
Belmira, isso realmente aconteceu. Só não posso contar o nome do santo e da testemunha. Quem sabe, pessoalmente... Lembro-me de você falar da diferença entre um concerto e um concurso. Num concerto, o pianista tem de tocar o seu "melhor". Num concurso, tem de tocar melhor do que os outros. Às vezes, seu "pior" é suficiente até para ganhar. Como você, não gosto de concursos. Por insegurança e vontade de vencer, os jovens acabam agindo como políticos em campanha eleitoral. Para receber "votos", tocam, ou dizem "musicalmente", aquilo que acham que os jurados querem ouvir. E se esquecem de sua própria personalidade, ingrediente fundamental no processo criativo. Belmira, os poloneses imaginam deter o segredo e a verdade sobre como interpretar o conterrâneo Chopin. Consideram Varsóvia a "meca" da música do compositor e dão a impressão de que se comunicam com o além todos os dias, falando com Freddy através de um telefone especial. E ao preço de uma ligação local. Mas, neste concurso, o castigo veio a cavalo: nenhum pianista polonês chegou às finais.
Confesso que a única coisa que realmente me aborreceu foi a eliminação da romena Mihaela Ursuleasa, um raro talento. Você ainda vai ouvir falar muito dessa menina. Sua forte personalidade incomodou alguns jurados e ela acabou desclassificada, depois de tocar na prova semi-final. Absurdo! Entre os seis finalistas, havia dois chineses, um russo, uma japonesa e um italiano. Ia esquecendo da argentina, a única latino-americana da competição. Querida, nenhum brasileiro e uma argentina na final !!! Mas devo dizer que a garota, Ingrid Fliter, é muito competente e faturou merecidamente o segundo lugar. O primeiro prêmio, de 25 mil dólares, foi para o chinês Li Yundi, que completou 18 anos durante o concurso. Além de simpaticíssimo, ele é fenomenal. Belmira, aposto – vinte contra um – que, em dez anos, os chineses se tornarão os maiores pianistas do planeta.
Tenho de parar por aqui. Estou indo para a Alemanha, onde o sol parece brilhar. Assim espero.
Um beijo do
Arnaldo