Cartas de Londres, 2000-09-28
Belmira querida,
Obrigado pela carta. Não se preocupe, pois entendo perfeitamente as razões que impediram você de ir ao Municipal, no mês passado, para me ouvir. Espero que, com a chegada da primavera no hemisfério sul, sua bronquite asmática tenha finalmente partido. Sei também que um dueto para tosse e piano é a última coisa que desejaríamos. Só senti pena por você não ter presenciado um dos momentos mais dramáticos de minha carreira. Aconteceu durante um dos 24 Prelúdios de Chopin. O fatídico No. 16. O teclado estava meio escorregadio e, talvez devido à umidade, meu terceiro dedo da mão direita derrapou e acabei "capotando". Aos trancos e barrancos, me recompuz e terminei de tocá-lo. Mas, apesar de ter ainda alguns Prelúdios pela frente, parei. Estava arrasado. Minha imobilidade provocou um silêncio mortal no teatro lotado. "Será que ele esqueceu?", a platéia, certamente, se perguntava. Enquanto isso, eu me perguntava incessantemente: "como isso foi acontecer?". Foi então que baixou em mim o "Anjo Racional", velho companheiro dos meus tempos na Faculdade de Engenharia. Com sua falta de graça habitual e sorriso irônico, deu um vôo rasante no piano e disparou: "cara, se você sabe tocar esse negócio direito, por que então não o repete?". Foi como se eu tivesse recebido uma bofetada. Despertei do pesadelo e anunciei: "VOU TOCAR ESSE PRELÚDIO NOVAMENTE". Belmira, eu repeti o Prelúdio! Repeti o No. 16!! E, incrível, saiu ótimo! Ainda bem que o "Anjo Malvado" não deu o ar de sua graça. Eu poderia ter errado novamente e, desta vez, de propósito. Às vezes, tenho a impressão de que, quando estou no palco, adquiro uma força muito maior do que aquela que realmente tenho.
Um mistério e, sobretudo, um perigo. A reação do público foi surpreendente. Quando terminei, a platéia aplaudiu aos gritos, como se quisesse dizer "tudo bem, vá em frente! Estamos com você". Fiquei emocionado. Ter mais de uma chance é o sonho de todo músico que se preza e tem autocrítica.
Fiquei pasmo de saber que você, uma professora de piano (apesar de aposentada), tem passado dias e noites na frente da TV, assistindo as Olimpíadas. Dei gargalhadas quando soube que seu esporte predileto é o levantamento de peso. Belmira, seja franca, o que mais te fascina: o esporte ou os atletas? Lembrei-me do Aderbal, aquele carregador de pianos por quem você se apaixonou loucamente quando mudou de casa... Voltando às Olimpíadas, você não acha que o ser humano, na obcecada tentativa de se superar, demonstra, na verdade, seu inconformismo em relação às suas próprias limitações e à sua finitude? Talvez o mesmo aconteça com os pianistas. Quando Tchaikowsky compôs seu Concerto No. 1, o pianista Hans von Büllow, um dos mais importantes da época, declarou que a peça, de tão difícil, só poderia ser tocada pelo demônio. Aliás, você sabia que Wagner roubou a mulher do Büllow? A rapariga em questão era a filha de Liszt. Bem, isso não vem ao caso. Atualmente, qualquer bom estudante de piano pode executar esse concerto sem grandes problemas. Eu me pergunto, por exemplo, se Liszt tinha realmente a técnica extraordinária que seus contemporâneos descreviam. Acho que hoje ele levaria pau, se tocasse sua famosa Sonata num exame da Julliard School, de Nova York. E se você contar para alguém que eu disse isso, vou espalhar que você enlouqueceu de vez. Belmira, tive uma idéia. Por que não sugerimos ao COI, Comitê Olímpico Internacional, a inclusão de uma nova categoria em futuras competições: a dos "pianistas"? Afinal, tocar piano é uma atividade atlética e, consequentemente, desportiva. Em inglês, usa-se o mesmo verbo para tocar e jogar. "I play football", "I play piano". Prometo que, se convocado, levo você como minha treinadora. Talvez eu consiga bater o recorde na "Valsa do Minuto". Ou ganhar o ouro na modalidade "escala mais rápida". Por que não? Assim, o Brasil aumentaria suas possibilidades de obter mais medalhas. Tudo pela Pátria e pela música. Vamos propor?
Cheguei hoje da Itália. Toquei em Modena, cidade do Pavarotti. Melhor que o concerto foi o jantar logo após. Belmira, comi o mais espetacular "tortellini" de minha vida. De tirar o fôlego. Fico sempre feliz de chegar ao Reino Unido que, ultimamente, está mais para reino do que para unido. Você deve ter lido nos jornais que, por aqui, a febre do momento é a discussão sobre o livro publicado pelo ex-secretário da princesa Diana. Não dão sossego à família real. Podem dizer o que quiserem, mas sou monarquista. Mas só na Inglaterra... Belmira, vou parar por aqui, pois amanhã embarco para uma turnê nos Estados Unidos e tenho de estudar. O Prelúdio No. 16.
Beijo tranqüilo do
Arnaldo