Cartas de Londres, 2001-02-13
Belmira querida,
Obrigado pela carta. Engraçadíssima. Morri de rir com a piadinha que está correndo o Brasil sobre o novo nome da Petrobrás. Acho "PetrobrAss" perfeito. É pertinente, carioca e mostra que a moçada, nestes tempos de globalização, já engatinha no inglês.
No Reino Unido, as novidades são poucas. Neste inverno que não termina, os hospitais estão cheios e a mudança de sexo é o hit do momento. Falando nisso, um casal de homens está lutando, sem sucesso, pelo direito de batizar seus gêmeos, adotados, of course, na Church of England. Mas a manchete desta semana ficou mesmo por conta do inglês Stephen Downing, condenado a 27 anos de prisão por ter assassinado uma moça. Belmira, depois desse tempo todo, descobriram que as amostras de DNA do condenado e do verdadeiro assassino não coincidiam. Com cara de chuchu, a justiça admitiu o erro e soltou o rapaz. Ele parece conformado, sobretudo com a perspectiva de receber uma indenização milionária. Fala-se em 2 milhões de libras, cerca de 6 milhões de reais! Ouvi, num programa de entrevistas da BBC, que muita gente se disporia a enfrentar 27 anos de cadeia para receber esse dinheiro. Belmira, como comparações são inevitáveis, não posso deixar de pensar no Brasil. A comparação ajuda a estabelecer verdadeiros parâmetros de julgamento. Na música e na vida. Como a justiça funciona no Brasil? Nossos políticos são honestos? O presidente é corajoso? O fulano tocou bem? Como vai sua mulher? As respostas "acertadas" a quaisquer perguntas deveriam ser respostas a uma outra pergunta: "comparado com o que ou com quem?"
Querida, não preste muita atenção nessas minhas confusões. Estou um pouco cansado pois voltei ontem de mais uma turnê pelos States. Como se tocar piano não fosse suficientemente difícil, ainda enfrentei outros tipos de dificuldade. No domingo passado, por exemplo, fiquei dez horas no aeroporto de Boston, esperando que uma tempestade de neve passasse em Burlington, no estado de Vermont, onde eu daria um recital no dia seguinte. Acabamos decolando num teco-teco, às 11 da noite. Durante o vôo, tive certeza de que minhas noites estavam contadas. Determinadas circunstâncias dramáticas, às vezes, acabam se tornando engraçadas. Belmira, qualquer semelhança entre Vermont e um freezer é mera coincidência. Você não sabe o que é andar na rua, sob uma temperatura de menos 15 graus. Com vento. Na noite do concerto, saltei do carro sem olhar onde pisava e atolei os pés na neve. Quase tive um infarto. O jeito foi providenciar uma estufa, para assar meus sapatos e descongelar meus pés. E as mãos! "Está pronto, maestro?", insistia o diretor do teatro, me deixando ainda mais nervoso. Parece que toquei bem. Parece que complicações com sapatos me perseguem. Certa vez, em São Paulo, aconteceu o contrário. Cinco minutos antes de entrar no palco, já de casaca, percebi que, em vez dos habituais sapatos pretos, calçara um mocassim marrom claro. Por distração, é claro. "Ninguém vai notar", pensei ingenuamente. A produção do evento preferiu remediar, saindo à cata de um par de sapatos, tamanho 44. O único músico com pé-de-anjo que encontraram foi um flautista, que se dispôs a me emprestar suas "sapatilhas". Uma lancha, tipo vulcabrás, como aquela do Maluf. Calcei e descalcei-as imediatamente. "Está apertado, maestro?", alguém perguntou. "Não, querida, os sapatos é que estão fervendo por dentro. E não posso tocar com os pés em brasa", respondi, um pouco irritado. O problema foi resolvido de uma forma bem criativa: colocaram os sapatos no freezer. Dessa vez, toquei mal. O flautista, que se recusou a calçar meu mocassim, tocou descalço. Belmira, as pessoas acham que vida de pianista é fácil. O público compra ingresso para ouvir boa música e, corretamente, não quer saber se o artista está resfriado ou nervoso, com os pés frios ou quentes.
O humor inglês pode ser inteligente e seco. Ou de mau gosto, como o do editor de um jornal de uma pequena cidade que, para fazer uma gracinha, publicou que haveria uma distribuição gratuita de manteiga na cidade. Às nove da manhã, debaixo de uma chuva torrencial, já havia uma fila imensa de velhinhos esperando a manteiga. O gozador teve de pedir demissão. Belmira, você conhece aquela do casal inglês, John e Mary, que passava em frente a um cemitério?
John - Darling, se você morrer antes de mim, sabe o que escreverei em sua sepultura?
Mary - Não, darling, o quê?
John- "Aqui jaz Mary, cold as ever".
Mary - "Oh, Darling, mas se você for antes de mim, sabe o que escreverei na sua?
John - No, darling, what?
Mary - "Aqui jaz John, hard as never".
Querida, caso você não tenha entendido, "cold as ever" significa "fria como sempre" e "hard as never", "duro como nunca". Ficou muito chocada?
Beijo grande.
Arnaldo
PS. Onde você vai passar o carnaval ? Eu estarei em Israel, tocando o concerto de Tchaikowsky. Carnaval de pianista é duro...