De Madureira para o mundo
Cartas de Londres, 2000-06-09
Belmira querida,
Que bom que você gostou de minha última carta. Quando recebo elogios de amigos queridos, lembro-me de uma história do regente italiano Arturo Toscanini, homem de temperamento fortíssimo e mulherengo incorrigível. Certa vez, o maestro ensaiava para um concerto, do qual participariam um tenor e uma soprano. O rapaz até que cantava direitinho, mas a moçoila, de curvas generosas, desafinava sem parar. Com os ouvidos irritados, o mestre não se conteve e soltou os cachorros em cima do pobre tenor. "Tosca, você me ensinou uma coisa muito importante", disse um amigo do maestro, após o ensaio. "O quê ?", perguntou Toscanini. "Eu sabia que o amor era cego e agora sei que ele também é surdo", respondeu o amigo. Pois é, Belmira, ainda bem que a amizade tem suas deficiências.
Enquanto escrevo, ouço na BBC um programa chatérrimo e metido a intelectuerda, sobre a influência de Bach na obra do compositor inglês John Cage. Belmira, não se fazem mais programas como antigamente. Lembra-se da transmissão ao vivo, pela Radio MEC, da master-class que você deu para os alunos do Conservatório de Varginha Mirim ? Foi inesquecível. Naquela aula, você enfatizava particularmente o uso do pedal na interpretação pianística. Um aluno tocava e você dizia: "Tira...não....nããão...bota...éé...assim....não, não....bota devagaaar...". No Rio de Janeiro não se falou de outra coisa.
Gosto de viver na Inglaterra, onde o humor, apesar de seco, ainda é um dos principais produtos de exportação. Depois da excentricidade, é claro. A propósito, acabo de ler um livro muito interessante, de um tal Paul Langford, que analisa o comportamento britânico durante quatro séculos. Simplesmente fascinante. Li que, no século 16, as mocinhas inglesas cumprimentavam os homens com um beijinho na boca. Para horror dos franceses e alemães, os maiores chatos do continente. A categoria dos ingleses sempre foi indiscutível, apesar de, às vezes, eles descambarem para o estilo xixi-cocô. Pouca gente sabe que, antigamente, não havia banheiros como os que conhecemos hoje. Não existia uma parte da casa dedicada às necessidades íntimas. Privacidade, nem pensar. Quando uma lady precisava dar uma sentadinha no trono, o marido inglês, por cortesia, tirava os homens de perto. Isso é que é classe ! Já os franceses não estavam nem aí para o futebol. Quem quisesse, que visse. O mais incrível é que ninguém dava pelota para o visual. E ainda ousam dizer que são eles os mestres da estética... Belmira, já imaginou o surrealismo ? A pinimba dos ingleses com os franceses também não é de hoje. Dizia-se que um francês de estirpe deveria ser falante. E que um inglês só deveria falar quando tivesse algo a dizer. Acho que a regra continua valendo.
Belmira, nos últimos vinte anos, um dos meus problemas tem sido a adaptação, sem sucesso, a essa cultura. Não é para menos. De um subúrbio da Central para o mundo !! Achei uma foto nossa no Madureira Tênis Club, depois de meu primeiro concerto. Eu tinha seis anos de idade e usava aqueles óculos, tipo "burraldo". E você, gloriosa em seu vestido de voile cor-de-rosa e penteado "mãe-de-miss". Tenho saudade. De você e do meu passado verde-amarelo-idealizado. O escritor americano Nathaniel Hawthorne é quem melhor descreve o que sinto. Ele diz mais ou menos o seguinte: nós adiamos sempre a realidade da vida até, um dia, respirarmos novamente o ar nativo. Só que não encontraremos mais na atmosfera aquela qualidade revigorante, que tínhamos na memória. Entre dois países onde já vivemos, não pertencemos a nenhum. Ou temos somente aquele pequeno espaço, no qual finalmente depositaremos nossos ossos descontentes.
A solução é pensar como o Millôr: pobre de nós, se daqui a cinquenta anos dissermos "como eram bons aqueles tempos".
Quero te ver.
Beijo do Arnaldo
PS. Não se preocupe que não estou deprimido.