Cartas de Londres, 2000-08-18
Belmira,
Obrigado por sua cartinha. Não brigue comigo, querida. A falta de tempo e de cabeça me impediram de te escrever antes. Mas já estou na terrinha, recém-chegado de Duszniki, um vilarejo polonês. As grandes atrações locais são os sanatórios e o Festival Chopin. Fui parar lá por causa do festival, é claro. A cidade parece respirar música. Isso porque foi lá onde o compositor deu seu primeiro concerto, aos 16 anos. Tudo leva o nome de Chopin, de lavanderias a açougues. Eu estava nervoso pois tinha de tocar, pela primeira vez, os 24 Prelúdios. De Chopin, naturalmente. E o pior, com a presença da TV local. Pior porque, como você sabe, odeio microfones, especialmente acompanhados de câmeras. No dia do concerto, estudei oito horas. OITO HORAS, Belmira. Cheguei a sentir uma sensação de dever cumprido. Coisa rara. Não senti nem a ameaça da famosa Lei de Murphy – aquela que diz que "se algo pode dar errado, com certeza dará". E deu. Bem, assim que comecei o primeiro prelúdio, ouvi um zumbido estranho. Belmira, quando me dei conta, percebi que uma mosquitada havia invadido o palco, atraída pelos holofotes colocados para a TV. Um desespero. Acho que fiquei anestesiado e, por isso, continuei. Eram mosquitos por todos os lados. Até nas teclas brancas. Num certo momento, matei um deles com o mindinho direito, durante uma escala rápida. Sorri vitoriosamente. De vez em quando, um pousava na minha testa, enquanto outro dançava a dez centímetros do meu nariz. Resumindo: toquei mal. Mas, entre mortos e feridos, todos acabaram se salvando.
Belmira, é claro que quero te ver no meu concerto no Municipal do Rio. Em homenagem aos mosquitos poloneses, tocarei uma seleção de 12 Prelúdios de Chopin. Pouca gente sabe que, na Renascença, o prelúdio era uma espécie de improvisação, usada pelos cravistas para testar seus instrumentos antes de começarem o concerto propriamente dito. Com o tempo, o prelúdio tornou-se uma forma musical independente. Como bem define o Aurélio, "uma composição livre, de caráter imaginativo e sugestivo". Vou tocar especialmente para você os de Nº. 8 e 15 (o da "gota d'água"). Lembro-me de você mencioná-los como seus favoritos. E da galera do Flamengo. Belmira, reze por mim no Nº.16. Êta, coisa difícil. As gotas d'água do prelúdio anterior (Nº. 15) parecem adquirir vida própria, materializando-se numa verdadeira cascata frenética, gerando um misto de ansiedade e excitação. O último deles, o 24, termina com três badaladas, como um sino anunciando o Apocalipse, o fim. Para os mais otimistas, uma viagem de lazer ao buraco negro do Stephen Hawking.
Nunca mais esqueci de uma frase sua depois de um recital que dei no Rio: "Não é incrível que Chopin tenha morrido aos 39 anos e o Marechal Rondon aos 92 ?" Falando em números – e no meu concerto de sábado - há 99 anos, Rachmaninoff estreou seu Concerto Nº. 2. Até hoje, não entendo porque alguns puristas implicam com o pobre do Rack. Há alguns anos, conversando com o pianista austríaco Alfred Brendel, fiquei pasmo com sua afirmação de que "aquilo" não é música. Sei não, Belmira. Tenho a impressão de que certas pessoas, por defesa, se assustam com as emoções que a música pode desencadear dentro delas. E as negam. Ou tentam ser mais inteligentes do que na verdade o são. O próprio Rachmaninoff (1873-1943) disse que "a música de um compositor deve representar seu país de nascimento, seus casos amorosos, sua religião, os livros que o influenciaram e as pinturas que ama. Quando componho, não faço esforço para ser original, romântico ou nacionalista. Escrevo o que ouço internamente e tento dizer, de uma maneira simples e direta, o que brota de meu coração." Bonito, né ?
Comecei a falar sobre o Rack porque vou tocar, depois dos 12 Prelúdios, o Concerto Nº. 2 para piano e orquestra e a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini. Muita gente não sabe que o Concerto Nº. 2, e preferido do grande público, foi dedicado a um médico, um tal de Dr. Nikolai Dahl, especialista em hipnose. O compositor, depois de passar por um longo período de depressão, acabou por procurar o divã do Dr. Dahl, que lhe repetia diariamente: "Rack, você começará a compor novamente... você pode... sua música é bonita". E assim nasceu o Rack 2. Belmira, sei que o Concerto Nº. 2 é sua menina dos olhos. Mas você também não pode negar que a Rapsódia Sobre um Tema de Paganini (1934) é sua obra mais bem escrita, do ponto de vista formal. Não me canso de tocar a 18ª. Variação, aquela que todos conhecem como "Somewhere in Time". Podem me chamar de cafona, piegas. Não ligo. Lembro-me, ainda adolescente, de você me dizer: "Meu filho, não tenha medo de ser feliz".
Querida, vou parar por aqui pois tenho de estudar. Estou pensando em me bezuntar com um repelente antes do concerto. Nunca se sabe... Cruze os dedos para esse seu amigo.
Beijo do Arnaldo
PS. É ridículo eu ter de escrever para você estando na mesma cidade. Mas enquanto você não instala um telefone em casa, a cartinha é mesmo o único jeito.