Identidade, 1952-01-01
Um amigo meu diz que o grau de desenvolvimento de uma cidade é determinado pelo seu aeroporto. Da janela do avião avistei vira-latas passeando pela pista. Eu chegava a Bari para tocar com a sinfônica local. Os cachorros até que eram bem-vistos, especialmente depois de uma monótona estada na Suiça.
Essa já era a terceira visita à cidade em menos de dois meses. Explico: fui contratado pelo Maestro Marvulli, uma figura simpaticíssima, para participar com outros quatro pianistas da integral das obras para piano e orquestra de Rachmaninov. Que são cinco. A mim caberia o quarto concerto. Na primeira vez, as partituras da orquestra não chegaram. Na segunda, não chegaram a tempo.
Festa geral. Eu já era tido como um membro efetivo dos orchestrali. Nossas idas aos deliciosos cafés viraram hábito. Acabei sendo convidado para um almoço na casa de Nino, um talentoso violinista, e Rosa, sua mulher.
Devorava eu um divino spaghetti ai frutti di mare quando tocou a campainha. Era Piero, o pai de Rosa. Um senhor de olhar severo. Sentou-se conosco e começou a contar as agruras e embates que estava tendo com o proprietário do seu imóvel.
- “Estou sendo despejado do meu apartamento???, disse zangado e olhando para mim !
- “É ????, respondi com aquela cara de “o que é que eu tenho com isso ????
Silêncio.
- “O senhor já procurou um advogado ????, tentei ser simpático.
Não me ouviu. Aproximou-se como se fosse me contar um segredo:
- “Meu filho, vou lhe ensinar uma coisa: se algum dia alguém lhe disser que, num lugar muito remoto, existe um judeu decente, não acredite. Sabe por quê ? Porque não existe nenhum judeu decente nesse planeta. Nenhum !???, vociferou Piero.
Levantei-me. Uma mistura de angústia e náusea fez com que eu me retirasse da sala. Quando me dei conta, estava no banheiro. Nino batia à porta.
- “Arnaldo, você está bem ? Pode sair que o ar está puro outra vez.???
Despedi-me cordialmente do casal.
- “Maestro ! Abbiamo un piccolo problema !???
- “Já sei… As partituras não chegaram, vero ????
- “Cosa facciamo, maestro ????
Nunca toquei o terceiro movimento do primeiro concerto de Mendelssohn tão rápido. Numa das oitavas em fortíssimo, feri o quinto dedo da mão direita, “deixando um rastro vermelho no teclado alvinegro???, como diria um outro amigo meu.
Último acorde. Ovação e público de pé, como na Antiga Roma.
Na platéia, um senhor gritava “bravo !??? enlouquecidamente. Olhei bem: era Piero.
Sussurrei para Moishe, digo, Mendelssohn:
- Ich hob nichts farshtanen ! (Não entendi nada !)
P.S. Vocês já leram o livro “Se isto é um homem???, do Primo Levi ? Eu recomendo.