- Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995)
, 1995-06-12
Descrever a sua pessoa física seria como tentar escrever a biografia de um fantasma. Comentar sobre a pessoa jurídica é um pleonasmo. Estabelecer uma relação entre as duas, nem pensar !
Sua obsessão com a perfeição era doentia. Cancelava concertos como bebia um copo de vinho tinto. Possuia um som mágico. Acordava tarde. Fumava como um louco. Tinha uma personalidade difícil, para não dizer impossível. Seu mutismo gerava tagarelice. Viajava sempre com seus dois pianos. E dois afinadores. Foi o herói de várias gerações. E o vilão de poucos frustrados. Tudo isso, todo mundo sabe.
Mas qual era a sua verdade interna ?
O fato Michelangeli é, na realidade, o fruto da imaginação de cada um. E cada qual carrega dentro de si um Arturo diferente. O “meu??? é assustador.
Projetava seu autojulgamento, gerado nas cavernas do seu subconsciente, no grande público. Daí o pavor. Dele mesmo. A falha, sobretudo a técnica, representava um erro moral e passível de julgamento, para o qual a pena era a capital.
Era capaz de estudar três compassos durante três horas. Sua música tinha que ser imaculada, apesar da consciência dessa impossibilidade. Como a mãe virgem de um Benedetti. Ou Virgem mãe. O esbarro na tecla vizinha traduzia uma recusa da imortalidade e, ao mesmo tempo, sufocava a única coisa pura que possuía e lhe restava. Por isso sofria, a ponto de o seu pretérito musical não poder se permitir a imperfeição. Entrava no palco lívido, como o drácula, e para o caixão voltava, depois da ovação. Era como um genial vivo-morto.
Apesar do aparente desprezo pela humanidade, lá estava sempre o menino acuado e escondido atrás do muro intransponível de vidro e medo. Certamente por não ter acesso ao mundo que via.
Suas gravações jamais foram versões do fato mas sempre a pura verdade do que era capaz. Como raras agulhas de um palheiro exposto nas lojas de disco. Sua versão das Variações Brahms-Paganini deveria ser a bíblia dos pianistas. O “seu??? Scarbo de Ravel foi o mais sobrenatural da história do piano. Aquele ao vivo e sem edições, em 1986, no Barbican de Londres. As pessoas se entreolhavam e a mesma pergunta se repetia em todos os olhares:
- Será que eu estou ouvindo certo ? Ou é simples alucinação ?
Não é verdade que seu repertório fosse reduzido. Conhecia profundamente toda a literatura pianística. Para que tocar a obra completa de Chopin em público ? Por que se arriscar ? Em nome de que e para quem ?
Ao grande maestro pertenceu o mérito da coragem, sempre coerente com suas próprias neuroses, as quais respeitava profundamente.
A única moeda que conhecia era a música. Ao ser perguntado qual havia sido o prejuízo num processo perdido devido ao cancelamento de uma turnê no Japão, pensou por alguns segundos e respondeu, como se essa questão jamais tivesse lhe occorrido:
- Um disco.
Sua aventura no mundo dos negócios foi tragicômica. Tornou-se co-proprietário de uma companhia de discos para quem se recusou a gravar ! Foi decretada a falência e ordenado o confisco de todos os seus bens. Se tocasse na Itália, seus cachês seriam arrestados pela Receita Federal local. Depois desse incidente, deu somente um recital em sua terra natal. No Vaticano, em homenagem ao Papa.
Sua ironia era negra. Da mesma cor de suas camisas preferidas.
- Maestro, quem são os grandes pianistas da atualidade ?
- Sono tutti morti.
Na biografia impressa nos programas, não havia menção do seu passado acadêmico ou de realizações profissionais. Somente comentários genéricos sobre suas atividades extramusicais: médico, campeão de esqui na neve e piloto de fórmula um.
Foi casado e separado. Vivia, diz-se que maritalmente, com sua secretária há mais de 20 anos. Não teve filhos. Só um irmão, com quem mal falava, que é hoje violinista aposentado de uma obscura orquestra de câmara milanesa.
Passou por um período em que, literalmente, se esbofeteava a cada dois minutos.
- Por que isso, maestro ?
- Prevenção contra rugas, respondeu secamente.
Durante as manhãs, gostava de ficar estatelado na cama, fumando e lendo o almanaque do... Mickey Mouse. Como únicas testemunhas, a térmica de café e o cinzeiro. Isso é verdade. Eu juro.
Dizia que se não pudesse mais tocar se suicidaria. E assim conseguiria derrotar a sua própria morte.
Maestro, descanse em paz. O senhor merece.