Veja Rio, 1996-07-28
Aos três anos, trocou o chocalho pelo piano. Aos seis, perguntou:
- Manhêêê ! Posso brincar com o Igor ?
- Pode. Depois que você estudar as suas dez horas de piano.
Esse é um dos diálogos fatalmente imaginados ao se ouvir os dois concertos de Chopin, magnificamente tocados por Evgeny Kissin, um menino de doze anos. É assustador pensar que, num futuro, a engenharia genética possa criar um Mozart. Ou pior, um Einstein malvado.
Um par de jeans ou um vidro de Nescafé eram, na Moscou de verdade, o objeto do desejo disfarçado até da intelligentsia. Para a grande viagem ao Ocidente era necessário ser o melhor dos melhores. Aos 12 anos, Evgeny não precisou nem perder como Pogorelich. Foi o primeiro de um concurso que não se realizou.
Com a substituição do ferro pelo algodão, a cortina soviética se abriu definitivamente para a passagem de Kissin, ao mesmo tempo em que se universalizava o conceito de cultura como produto de consumo. O plano, se engendrado, não poderia ser mais perfeito.
Rubinstein dizia que, além de talento, é preciso sorte, sorte e sorte. Guiomar Novaes, por sua vez, ensinou que carregar o cetro e a coroa é ainda mais difícil do que obtê-los. Os tempos mudaram e os jovens de hoje já nascem idosos. Na adolescência, Kissin já estava onde Rubinstein só chegou depois dos cinquenta.
O sucesso, efêmero, tem seu lado cruel. Qual é a alternativa para o futuro quando já se está no topo ? Explorar a regência como Ashkenazy ? Abandonar os palcos por vários anos como Horowitz ? Cancelar concertos como Michelangelli ? Compor como Glenn Gould ? Tocar nú como Gulda ? Ou por amor e até a morte como Arrau ?
Tudo depende da relação entre as pessoas física e jurídica, inevitáveis irmãs siamesas. Ninguém nasce pianista. Ou será que tambem existe criança jurídica ?
Com as espinhas do rosto mais do que cicatrizadas, o senhor Kissin nos visitará pela primeira vez no dia 4 de agosto. Ansiamos todos pela experiência.