Artigo
Rebu no teclado
- Gravadora provoca gritaria ao escolher os melhores pianistas do século
Veja, 1998-11-29
Uma bomba parece ter caído no mundo da música clássica. A Philips, num golpe de marketing, está lançando a coleção Grandes Pianistas, que pretende ser "definitiva" e oferecer, até setembro de 1999, as 100 melhores gravações do século, realizadas por 74 artistas do teclado, escolhidos por uma única pessoa. Acabam de chegar ao Brasil os vinte primeiros CDs da coleção, que está gerando mal-estar no mercado musical internacional.
O canadense Tom Deacon, de 57 anos, é, segundo ele mesmo, o guru da série. Na Holanda, onde trabalha para a Philips, corre a piada de que Deacon, após incorporar Moisés, recebeu de Deus as tábuas com o nome de seus eleitos. "A escolha foi democrática", diz Deacon, um ex-produtor de rádio. Sabe-se que não. Seja como for, a idéia de relançar gravações adormecidas nas prateleiras animou as companhias concorrentes a se tornar parceiras no projeto. No momento em que a indústria fonográfica enfrenta sua pior crise, esse pode ser um bom negócio para todos. Com um marketing apontado para o consumidor com perfil de colecionador, o consórcio espera atingir a incrível marca de 10 milhões de CDs vendidos.
O regente André Previn é, sem dúvida, um músico de primeira linha, mas sua inclusão no rol dos maiores pianistas do século é, no mínimo, bizarra. O absurdo nasceu da atitude do pianista croata Ivo Pogorelich, que, ao ser convidado por Deacon, encontrou uma maneira divertida de se autopromover. "Preciso de seis anos para dar uma resposta. Um ano para ouvir meus discos e cinco para escutar os dos outros." Como a coleção obedece à ordem alfabética, abriu-se vaga para mais um pianista cujo nome tivesse a inicial "P". Previn então foi alçado ao Olimpo, já que Deacon se negou a substituir Pogorelich por Menahem Pressler, integrante do conceituado Trio Beaux Arts. Enquanto isso, a viúva do lendário pianista austríaco Rudolf Serkin (1903-1991) tentava, sem sucesso, impedir a participação do marido no projeto, por não querer vê-lo misturado com "pianistinhas". Essa é a razão pela qual os CDs de Serkin não serão os melhores, mas sim os que não precisaram da assinatura da viúva.
Desconhecidos - Imperdoável, na coletânea, a ausência de Guiomar Novaes (1896-1979), maior estrela do teclado brasileiro. "As gravações de Novaes não são representativas de seu real talento", explica Deacon, encabulado. Magdalena Tagliaferro e Jacques Klein também ficaram de fora. Para consolo dos brasileiros, restou a merecida inclusão de Nelson Freire. Seu CD, que chega ao Brasil neste mês, traz uma fulgurante versão do Fledermaus, de Strauss-Godowsky, realizada para a Rádio de Berlim em 1974.
Há grande número de pianistas desconhecidos do público. A russa Maria Yudina (1899-1970), que nunca deixou a União Soviética, saiu do anonimato após um concerto em Moscou, transmitido ao vivo pelo rádio. Ao ouvi-la, o ditador Josef Stalin ficou encantado e a KGB, o serviço secreto soviético, foi imediatamente despachada para o teatro. Yudina e orquestra tiveram de gravar, durante toda a madrugada, o concerto que haviam tocado horas antes. Outro bom pianista da série é o polonês Ignacy Paderewski (1860-1941). Famoso por seu Minueto, Paderewski foi o único músico na história a desenvolver uma bem-sucedida carreira política, chegando a exercer o cargo de primeiro-ministro da Polônia, em 1919. O austríaco Alfred Brendel aparece na coleção com seis CDs, quantidade só atribuída a mais seis monstros sagrados. A turma do marketing caprichou tanto que Brendel, vedete da Philips, é apresentado como "o maior intérprete vivo de Mozart, Haydn, Beethoven e Schubert". Uau!!! O pianista Paul Badura-Skoda, também austríaco, tem em seu poder gravações inéditas de Edwin Fischer (1886-1960), professor de Brendel e escolhido de Deacon. Perguntado se ele as cederia para o projeto, Badura respondeu com outra pergunta: "Estou dentro?" "Não", foi a resposta. "Então, não", replicou Badura.
Omelete - "Lista definitiva? Definitiva, só a morte!", comenta Paul Myers, ex-vice-presidente da CBS e quarenta anos de experiência no assunto. "Seria mais ético se a série fosse chamada de Grandes Pianistas da Philips, ou de Deacon", argumenta o empresário nova-iorquino William Capone. O diretor do International Piano Archives, Don Manildi, endossa: "Minha lista seria diferente". Como explicar ao mercado que Jean-Yves Thibaudet, esnobado pela Philips e cortejado pela Decca, não é um grande pianista? E Emanuel Ax, Aldo Ciccolini, Arcadi Volodos etc.? Entre os mortos, é incompreensível a omissão dos nomes de Rosenthal, Annie Fischer, Horszowski, entre outros. "Muitos foram os ausentes que poderiam estar presentes", justifica Tom Deacon. Escondendo-se atrás de um artifício semântico, a Philips se precaveu em chamar a série de Grandes Pianistas e não Os Grandes Pianistas.
Entre os CDs, que já estão nas lojas, são imperdíveis os de Horowitz, Argerich e Rachmaninoff. É inacreditável que os CDs dedicados a Glenn Gould (1932-1982) não contenham nenhuma peça de Bach. Nem mesmo as Variações Goldberg, o registro mais importante deixado pelo pianista canadense, reconhecido até pela Nasa, que o enviou para fora do sistema solar a bordo da nave Voyager. A lista de Deacon mostra que o mundo não produziu nenhum grande pianista entre 1957 e 1971. Em sua defesa, Deacon, diplomado em literatura francesa, poderia argumentar: "Não é necessário botar um ovo para julgar um omelete". Antes fosse.