Artigo
Virtuose furioso
- Em livro de depoimentos e memórias, o pianista Sviatoslav Richter expõe os dilemas de uma mente torturada pela genialidade
, 2001-09-10
Avesso a aviões, ele enfrentava estradas e o mar para ir de Moscou a Tóquio. E voltava pelo mesmo caminho. Ao longo da viagem, que durava meses, realizava cerca de 100 concertos. Trata-se de um louco ? Não, do russo Sviatoslav Richter (1915-1997), “o melhor pianista do mundo???, segundo o compositor Sergei Prokofieff (1891-1953). “Decidi pôr fim às mentiras ditas e escritas sobre mim???, disse o mestre dois anos antes de morrer. Para isso, confiou a tarefa ao excelente cineasta e escritor francês Bruno Monsaingeon. Como bônus, ainda concordou em tornar público seu diário secreto, escrito entre 1970 e 1995. O livro Sviatoslav Richter, Notebooks and Conversations (“Anotações e Conversas???, Editora Faber and Faber, 432 páginas, US$ 20.96), que acaba de ser publicado na Inglaterra, permite ao amante da boa música conhecer o mundo torturado e enigmático do grande artista.
As primeiras verdades expostas por Richter demonstram preocupação por assuntos triviais. “O cineasta Andrei Konchalovsky andou dizendo que eu me lamento por ter dedos grossos como salsichas e, por isso, não consigo encaixá-los entre as teclas brancas e pretas???, disparou. O mestre também se irritava com o rótulo de militante contrário ao governo soviético. “Eu era contra o sistema mas em tempo algum fui um ativista???, revelou. Refratário a causas políticas, o pianista parecia não temer nada. Diferentemente da maioria de seus colegas, jamais se filiou ao Partido Comunista, mas tocou no funeral de Stalin, em um piano de armário com pedais quebrados. Para Richter, aquele foi um momento triste. Não por amor ao ditador, mas pela amizade a Serguei Prokofiev, que teve a infelicidade de morrer naquele mesmo dia.
De origem alemã, Richter herdou dos pais o gosto pela música. Na infância já compunha, lia, era fanático por ópera, mas não se dedicava seriamente ao piano. Na adolescência, trabalhou como pianista da Ópera de Odessa, cidade onde cresceu e celeiro de grandes talentos, como o violoncelista Mstislav Rostropovitch e o violinista David Oistrakh. Aos 22 anos, optou definitivamente pelo piano, apesar de a ópera ser a menina de seus olhos. Foi aceito na classe do lendário Heinrich Neuhaus, professor do Conservatório de Moscou e responsável pela formação de outros grandes pianistas, como o russo Emil Gilels. Em plena era stalinista, Richter foi expulso duas vezes da instituição por se recusar a freqüentar as obrigatórias classes de “política???. Graças à intervenção de Neuhaus, a quem considerava um pai espiritual, acabou readmitido.
Ao ouvir o jovem Richter, o compositor Serguei Prokofiev convidou-o para executar seu então malsucedido “Concerto No. 5 para Piano e Orquestra???. Em 1941, a peça obteve sucesso estrondoso e a reputação do ucraniano começou a correr o mundo. Depois de quase vinte anos de “cativeiro???, Richter finalmente conseguiu permissão das autoridades soviéticas para tocar além da Cortina de Ferro. Em 1960, sua triunfal estréia no Carnegie Hall, de Nova York, lançou-o definivamente na primeira linha do mercado musical internacional.
Com uma memória prodigiosa, conta-se que preparou a complicada “Sonata No. 7???, de Prokofiev, em apenas quatro dias. Seu vastíssimo repertório incluía 80 programas de recitais e, somente na temporada de 1978-1979, realizou 200 concertos, executando 226 peças. Em 1980, a memória pregou-lhe uma peça durante concertos no Japão e na França. O trauma fez com que, pelo resto da vida, não tocasse mais nada de cor, mesmo que soubesse a peça pelo avesso.
O mestre podia tocar como um deus ou, segundo ele mesmo admitia, como um aluno medíocre. A obsessão pela qualidade tornou-o um crítico virulento, sobretudo dele mesmo. Certa vez, depois de um concerto em Viena, levou uma paulada da crítica austríaca. O artigo, sob o título “Adeus a um mito???, sugeria que o pianista deveria se aposentar. “Realmente toquei mal???, comentou resignado. “Além de não estar boa forma, meu padrasto, antes do concerto, ainda apareceu no camarim para contar que minha mãe estava morrendo???.
Seu conceito sobre a função do intérprete era utópico e paradoxal. Defendia a tese de que o executante, em vez de “contaminar??? a música com sua personalidade, devia ser mero espelho da partitura e incorporar as intenções emocionais do compositor. Assim, o intérprete se tornaria o próprio compositor. A idéia pode ser boa, mas inviável, já que é impossível dissociar-se de si mesmo, sem falar no absurdo que seria sentir por procuração. Já o pianista Vladimir Horowitz, outro ícone do pianismo do século XX, defendia o oposto. “Quando toco, me transformo em música???, dizia. Para Richter, um fundamentalista do bem, adicionar uma nova idéia à partitura era o mesmo que pecar. Quem sabe, contra o Criador. Seria interessante presenciar um encontro hipotético entre o russo e o compositor Gustav Mahler (1860-1911), que ensinava: “Para atingir um objetivo musical, a infidelidade ao texto não só deve ser permitida como obrigatória???.
No livro, Richter dá sua receita de como executar o início da “Sonata em Si Menor???, de Franz Liszt. “Antes de começar, não mexo um músculo e provoco uma sensação de vazio dentro de mim. Conto lentamente até 30, enquanto o público pensa: “Será que ele esqueceu ????. Assim, a primeira nota soará inesperada. É evidente que essa atitude envolve um elemento teatral, que considero importante, na medida em que se deseja criar esse tipo de atmosfera.???
Alfinetadas de Richter - clique para ver quadro |
Homossexual, Richter era casado e tinha crises de depressão. Em uma delas, ficou obcecado por uma lagosta de plástico. Ele a carregava para onde ia, como um ursinho de pelúcia. Na antiga União Soviética, ser gay era contra a lei e, apesar disso, o sistema nunca lhe criou problemas. O crítico americano Paul Moor afirma que “foram estas leis que o impediram de atingir a felicidade plena???. O livro ignora o assunto. “Não escrevi uma biografia, mas sim uma compilação de seu diário e da essência de nossas conversas???, disse o autor.
O mundo desse monstro sagrado parecia funcionar mediante um código próprio, indecifrável para ele mesmo. Punha lembretes em cima do piano, para se recordar de “escovar bem os dentes de manhã e à noite??? e “ler Proust ou Thomas Mann todos os dias???. Já no final da vida e sem forças para viajar, propôs ser anestesiado no quarto do hotel, em Paris, e acordado em Tóquio. Os médicos não concordaram com a idéia. A vida de Sviatoslav Richter poderia ser resumida em duas palavras: tocar bem. Talvez para que sua alma torturada encontrasse refúgio na música.