Arnaldo Cohen

O que ouviremos?

, 2001-01-01

Há três séculos, os músicos eram funcionários públicos que, para sobreviver, dependiam de favores da Igreja e da aristocracia. Hoje, um artista como Luciano Pavarotti recebe por concerto muito mais que um genial compositor do passado poderia amealhar durante toda a vida. O minueto era o “rock pauleira??? do século XVIII e as cortes as boates da moda. No século XIX, o público tinha o hábito de aplaudir entre os movimentos de um concerto. Atualmente, esse hábito é considerado pelos “acadêmicos??? sinal de ignorância. Com a introdução do profissionalismo na primeira metade do século XIX, os intérpretes ganharam novo status. Assim, graças à música clássica, as Madonnas de nosso tempo puderam florescer.

Nos dias de hoje, a arte é um produto de consumo, que segue leis de mercado baseadas na relação entre oferta e procura. Nuvens negras pairam sobre as companhias fonográficas e a tempestade parece irreversível. A responsabilidade é atribuída à “inteligência??? dos terráqueos e ao desenvolvimento tecnológico. A invenção do CD, produto indestrutível, fez com que nada mais pudesse ser criado, pois não existe produto mais perfeito que o perfeito. Uma idéia genialmente destrutiva. Com o repertório tradicional exaustivamente gravado, o golpe de misericórdia chegará pelas mãos da internet. Neste ano, discos do outrora exclusivo selo Deutsche Grammophon começaram a ser vendidos em bancas de jornal. Ao contrário do que previu o pianista canadense Glenn Gould, as gravações de estúdio não serão o futuro da música clássica e os concertos ao vivo sobreviverão.

Companhias como a Napster e formatos como o MP3 são o sucesso do momento. Funcionam como “music centers??? e têm como característica principal o estilo Robin Hood, que roubava dos ricos para dar aos pobres. O objetivo é oferecer aos internautas acesso gratuito às gravações. Por razões óbvias, a gritaria dos pop stars e das gravadoras já começou. A probabilidade de rouquidão é grande. A aposta geral é que será impossível controlar as fronteiras do espaço virtual. Num futuro breve, será a vez da música clássica. Os melômanos ainda terão a chance de assistir a óperas, balés e concertos transmitidos pela internet.

No fim do século XX, as artes deixaram de ser essenciais à vida do cidadão. Por isso, os governos democráticos pararam de investir em cultura. Na democracia, o indivíduo tem prioridade e a sociedade fica em segundo plano. Nos regimes totalitários, o indivíduo não vale nada e todos têm de trabalhar em prol de um objetivo comum. Não será surpresa nem coincidência se, dentro de alguns anos, os solitários chineses assumirem a liderança no mundo da música clássica, como os russos fizeram antes da perestroika. A música é uma linguagem codificada, “inventada??? e desenvolvida para driblar a opressão externa – cultural, política ou religiosa – e lidar com a repressão interna. Ao longo da História, são inúmeros os casos em que foi usada como arma eficaz. Com a queda da Cortina de Ferro e a restauração da liberdade no Leste Europeu, a música clássica perdeu a função. Até que seja novamente necessária. Na China ou em Júpiter. Aos que prevêem concertos ao ar livre em Marte, convém lembrar que o som não se propaga no vácuo.