Artigo
Utopia ao piano
- Tentativa de regravar concertos de Chopin à maneira do compositor resulta em tédio
Veja, 1999-12-31
Chopin e o CD com seus concertos (abaixo): fã de Bach e desprezo por Beethoven |
A intenção de Zimerman é impraticável, apesar de louvável. A criação musical, bem como a liberdade de expressão e de interpretação, sofre sempre a influência do momento social e político. Ora, como não podemos comparar o mundo atual com a realidade da primeira metade do século XIX, o exercício de fidelidade absoluta às intenções do compositor torna-se inócuo. Isso sem mencionar a diferença de sonoridade entre o piano Steinway, fabricado hoje, e o precário forte-piano usado na época. A percepção do tempo também é diferente. Na literatura, por exemplo, não há mais espaço para as longas narrativas proustianas. No cinema, cenas descritas a passo de cágado, como as do filme Solaris (1972), do russo Andrei Tarkovsky, mal conseguem manter o público acordado.
Zimerman: lento a ponto de deixar a obra desconexa |
Não há registros sonoros de como Chopin interpretava suas obras. Mesmo que houvesse, seria irrelevante. O russo Sergei Rachmaninoff (1873-1943) tocava seus concertos de maneira completamente diferente do que reza a cartilha russa. Será que ele não entendia de Rachmaninoff? Uma gravação do genial compositor francês Maurice Ravel, tocando algumas de suas peças para piano, soa como se fosse a de um aluno medíocre de conservatório. Se um grande pianista de nosso tempo, como o falecido russo Sviatoslav Richter, pegasse uma carona com o protagonista do filme De Volta para o Futuro e aterrissasse num palco do século passado, certamente seria vaiado.
Como intérprete, Chopin revolucionou a técnica pianística, tendo sido o primeiro a usar o polegar nas teclas pretas. "Você só pode julgar Liszt depois de ouvir Chopin. O húngaro é um demônio, mas o polonês é um anjo", comentou o novelista Honoré de Balzac. Chopin era um orquestrador medíocre, a ponto de o compositor Berlioz considerar a parte orquestral de seus dois concertos como "um frio e inútil acompanhamento". Aos 18 anos, Chopin declarou que "a música de Bach e Mozart representa meu modelo de perfeição musical", ignorando Beethoven, que acabara de morrer. "Assim que você decorar uma peça, estude-a no escuro. Somente quando os olhos não puderem ver a audição funcionará com toda a sua sensibilidade", ensinava Chopin a seus alunos.
Em música, o excesso de intelectualização pode resultar em perda de espontaneidade. Como no caso do pianista Alfred Brendel, que, em quatro décadas, gravou três vezes a integral das 32 sonatas de Beethoven. Para desespero do austríaco, a primeira versão é considerada a melhor. O mesmo parece acontecer com Zimerman, que, aos 43 anos, reinterpreta o que havia gravado aos 22. No Concerto Nº 1, apesar de sua técnica fenomenal, Zimerman faz com que a obra perca a unidade e a espinha dorsal, soando monótona e arrastada. A versão de 1938, do também polonês Josef Hofmann (1876-1957), um dos maiores pianistas de todos os tempos e que viveu numa época mais próxima à de Chopin, dura somente 33 minutos. A gravação mais lenta do mercado fonográfico era a do chileno Claudio Arrau, realizada em 1954, com quarenta minutos. Zimerman consegue quebrar o recorde de lentidão do chileno, executando a peça em 46 minutos. Dependendo da concepção musical de um artista, a duração de uma obra pode variar. Mas uma diferença de treze minutos não é mais uma diferença. É uma eternidade.
Paradoxalmente, vale a pena ouvir o CD de Zimerman. Nem que seja pelas discussões que provoca.