Corcunda sangue bom
- Sai uma nova versão do Rigoletto, ópera de Verdi, que poderia passar-se na Baixada Fluminense
Veja, 1998-04-12
Chega ao Brasil a ópera Rigoletto, de Giuseppe Verdi, em dois CDs, assinada pelo maestro italiano Riccardo Muti, à frente da orquestra e do coro do Teatro alla Scala de Milão. A produção conta com um elenco que inclui o "quarto tenor" Roberto Alagna, além dos cantores Renato Bruson, Andrea Rost, Dimitri Kavrakos e Mariana Pentcheva, entre outros. O libreto da ópera é de Francesco Maria Piave, um fiel colaborador de Verdi, que se baseou na peça Le Roi S'amuse ("O Rei Se Diverte"), do escritor francês Victor Hugo (1802-1885). Na época de sua estréia, Rigoletto enfrentou sérios problemas com a censura. O rei Charles I, personagem de Hugo, foi obrigado a assumir nova identidade e acabou rebaixado a duque de Mântua. "A Maldição" (La Maledizione), nome dado originalmente a Rigoletto, estreou em 1851 no Teatro La Fenice, em Veneza, dando início a um novo ciclo na carreira de Verdi. Logo depois o compositor produziria mais dois estrondosos sucessos: Il Trovatore e La Traviata.
Os dramas humanos são a base dos enredos da ópera e do teatro e nunca perdem a atualidade. Como em Shakespeare ou nas novelas de televisão. O libretista, peça-chave para o triunfo das produções líricas, tinha algo parecido com o que hoje chamamos de faro jornalístico. "Pai mata a filha por engano" poderia ser a manchete de um jornal sensacionalista, se a tragédia de Rigoletto fosse transferida para a Baixada Fluminense. A história, com alguns nomes alterados, seria mais ou menos assim: Alfredo, playboy milionário, tem um caso amoroso com a filha do respeitado industrial Dr. Gonzaga. O secretário de Alfredo, um corcunda gozador de apelido Rigoletto, espalha o boato e desmoraliza a família do industrial, que jura vingança. Irrecuperável, Alfredo seduz também a filha de Rigoletto, Gilda. Ao descobrir a sedução, o corcunda fica inconsolável e contrata Beiçola, um assassino profissional, para matar seu patrão. O pagamento será feito mediante a entrega do corpo de Alfredo. O marginal traça um plano perfeito: sua irmã, a boazuda Magda, seduz o playboy e o leva para um motel. A trama se complica para Beiçola quando Magda se apaixona por Alfredo e implora ao irmão que não cometa o crime. Para receber o dinheiro, o criminoso precisa de um corpo. Decide então matar o primeiro que aparecer. Ao saber pelo pai que o amado corre perigo, Gilda vai avisá-lo e, ao entrar no motel, é esfaqueada por Beiçola. No momento em que recebe um saco fechado com o suposto corpo de Alfredo, Rigoletto o vê passar ao volante de um carro conversível. Abre o saco e depara com Gilda agonizante. Antes de morrer, Gilda promete rezar por ele quando chegar ao céu.
Reinventando a roda - Filho de pai analfabeto, Giuseppe Fortunino Francesco Verdi (1813-1901) foi educado graças à generosidade de um amigo da família, o comerciante Antonio Barezzi. Aos 18 anos, rejeitado pelo consevatório de música de Milão por ter passado da idade-limite, teve de procurar um professor particular. Um ano depois, sem trabalho, voltou para casa e tornou-se diretor musical do pequeno vilarejo de Busseto, situado entre Parma e Cremona. Teve em seguida um grande fracasso profissional. A ópera "Rei por Um Dia" (Un Giorno di Regno) foi cancelada na manhã seguinte à primeira récita, o que gerou em Verdi ódio eterno tanto ao Scala como ao público milanês. Em 1842, a ópera Nabuco restabeleceu sua reputação e, desde então, Verdi não parou mais. Chegou a ser eleito para a Câmara de Deputados de Turim. Após a 27a. ópera, declarou: "Não sou um músico de formação acadêmica, mas apenas um compositor experiente."
Esta gravação do Rigoletto é de segunda classe. Não de terceira. Inaceitável a maneira brusca e grosseira com que a voz de Alagna, como duque de Mântua, foi artificialmente abafada na conhecida ária "Questo o Quella" do primeiro ato. As desafinações, ao longo de toda a performance, chegam a ser dolorosas, como no dueto da ária "È il Sol dell'Anima, la Vita È Amore", cantado por Alagna e Andrea Rost, no papel de Gilda. O famoso barítono Renato Bruson, interpretando Rigoletto, começa a sentir o peso da idade. Às vezes, a dicção dos cantores obriga o ouvinte a adivinhar em que língua a ópera está sendo cantada. O vaidoso Riccardo Muti (veja abaixo), claramente obcecado pelas indicações de Verdi, tenta reinventar a roda e patentear sua interpretação. O regente consegue apenas imprimir uma leitura clássica à partitura romântica, fazendo com que a atuação da orquestra seja somente discreta. A versão da Decca, com a Sinfônica de Londres, Pavarotti e Joan Sutherland, dá de 10 a zero na da Sony.
Nas artes cênicas, os efeitos visuais são parte integrante do espetáculo. No caso de ópera em CD, em que a parte visual é inexistente, como um simples amante de música entenderá o que se passa? A saída é apelar para o caderninho que acompanha a edição. Mas... eles cantam em italiano, e no encarte não há tradução! Afinal, o português não é a língua oficial de nosso país?
A falta de encartes traduzidos é resultado de uma jogada esperta das grandes gravadoras. Em vez de produzir discos de música clássica e lírica no Brasil, elas deixam que as lojas importem diretamente da matriz -- ou seja, obtêm o mesmo lucro sem nenhum investimento. É o caso deste Rigoletto da Sony.
Para compensar essas deficiências, o mínimo que um CD deve oferecer é excelência na qualidade musical. Do contrário, ouvir ópera pode ser mais penoso do que ouvir novela pelo rádio.
O Narciso da batuta
O narcisismo de Muti é alvo de piadas no meio musical. Uma delas conta que seu avião caiu no deserto. Dias depois, sem água, o maestro se ajoelha, desesperado, com as mãos estendidas para o céu e diz: "Senhor, eu Vos imploro. Dai-me um pouco de água." O milagre se realiza e suas mãos se enchem de água. Muti, então, passa-a pelas têmporas, ajeitando a bela e vasta cabeleira.
Além da vaidade, a pulsação da veia política do maestro chega a ser mais rápida do que a da artística. O sonho do regente italiano era suceder Herbert von Karajan na Filarmônica de Berlim. Muti chegou a apelar para o marketing pessoal, na esperança de criar uma imagem espelhada na do músico austríaco. Até incorporou ao guarda-roupa o mesmo tipo de camisa - com gola rulê - usada por Karajan. Não deu certo. O sonho virou pesadelo quando o eleito para Berlim acabou sendo seu grande rival, o também italiano, e formidável regente, Claudio Abbado.