Arnaldo Cohen

- O inglês Simon Rattle é o escolhido para reger a melhor orquestra do mundo, a Filarmônica de Berlim

Veja, 1999-06-27

Rattle: quietinho, quietinho, ele chegou lá

Só faltou a fumacinha branca saindo da chaminé para anunciar, na última quarta-feira, a escolha do regente que assumirá a chefia da melhor orquestra do mundo, a Filarmônica de Berlim, em 2002. A eleição teve mesmo emoções dignas de um conclave para a eleição de um papa. Acabou vencendo o inglês sir Simon Rattle, de 44 anos, que substituirá o italiano Claudio Abbado. O derrotado foi o argentino naturalizado israelense Daniel Barenboim, de 56 anos, que não conseguiu levar o cetro, apesar de todos os seus esforços. Sir Simon acaba de ganhar um emprego vitalício de cerca de 2 milhões de dólares por ano, que será eterno enquanto durar a lua-de-mel com os arrogantes músicos da Filarmônica. Ao contrário do que acontece na maioria das orquestras, os "berliners" são os únicos responsáveis pela nomeação de seu regente. O colégio eleitoral, formado por 128 músicos, dividiu-se em dois partidos. O "conservador", formado pelos músicos mais antigos, preferia Barenboim, um especialista no repertório tradicional, os famosos três "B" - Bach, Beethoven e Brahms (segundo as más línguas, Barenboim se julga o quarto "B"). E o partido "liberal", congregando os instrumentistas jovens, que viam em Rattle um artista mais ousado, por suas freqüentes incursões no repertório contemporâneo. Depois de acalorados debates, os músicos partiram para o voto secreto. Conhecido o resultado, os "liberais" comemoraram. "Foi uma vitória dos jovens", comentou Axel Gerhardt, 33 anos, violinista da orquestra.

"Noiva" recatada - O triunfo de Rattle fez com que a Inglaterra amanhecesse eufórica. Até o sol apareceu. A trajetória desse maravilhoso regente, originário da classe média de Liverpool, foi meteórica. Aos 25 anos assumiu o pódio da mediana Orquestra de Birmingham, com a qual realizou 954 concertos em dezoito anos, transformando-se no único maestro de sua geração a construir uma grande orquestra partindo do nada. Como se a competência musical não bastasse, Rattle, que já gravou mais de cinqüenta CDs, é um gênio da publicidade. Em 1994, foi condecorado pela rainha com o título de sir e aparece com freqüência nas primeiras páginas dos diários ingleses. É casado com uma negra americana, abraça causas politicamente corretas, é ótimo pai e tem fama de marido fiel. O carismático maestro soube do resultado da eleição quando recebia o título de honoris causa em música, da Universidade Oxford, e recusou-se a dar entrevistas, embora tivesse confirmado a aceitação do cargo. No dia seguinte, o beatle da música erudita embarcou, com os dois filhos, para um safári na ??frica.

O casamento entre uma orquestra - o noivo - e um regente - a noiva - só ocorre após um período de namoro. Nessa fase, a noiva, digo, o maestro, atua como convidado. A Filarmônica de Berlim é um partido disputado, e as noivas Barenboim e Rattle adotaram estratégias de sedução opostas. O israelense resolveu fazer o gênero atirado. Deixou claro, desde o primeiro momento, que ambicionava o posto. Titular da ópera de Berlim, usou sua influência com os políticos da cidade para garantir um bom dote. Se o desposasse, a orquestra teria seu orçamento aumentado em 14 milhões de dólares, conseguidos por Barenboim com seu prestígio. Já Rattle apostou no estilo recatado. Ficou quietinho, recusando ofertas de pretendentes de peso, como as orquestras de Boston, Nova York e Cleveland. A virtude de Rattle despertou a cobiça de Berlim, e foi a donzela difícil quem acabou subindo ao altar. Ou melhor, ao pódio. "Von Rattle", súdito de sua majestade, é um protestante que virou papa.