- Temperamental e supersticiosa, Martha Argerich ?uma espécie de João Gilberto de saias
Veja, 1999-02-14
Quem acha que uma mulher não consegue tocar piano como um homem ?porque nunca ouviu a argentina Martha Argerich, de 58 anos. Ela ?a maior entre as mulheres. E uma das melhores entre os homens. J?est?nas lojas a gravação histórica que marcou a estréia no mercado discográfico, pela Deutsche Grammophon, em 1960, dessa fascinante personalidade. A vida de Martita, como ?chamada pelos amigos, tem todos os ingredientes de um bom filme. Além de namorados célebres, como o violoncelista Mstislav Rostropovitch, Martha foi casada cinco vezes. A relação de maridos inclui um regente de coral, o chinês Chen, o maestro suíço Charles Dutoit, titular da Orquestra de Montreal, e os pianistas Stephen Kovacevich, Michel Beroff e o russo Alexander Rabinovitch. Das uniões, teve três filhas. Conviver com essa diva, que troca a noite pelo dia ?acorda às 4 da tarde ? não deve ser fácil. Principalmente para quem também ?pianista. "O que eu conseguia após seis meses de estudo, ela realizava em uma hora", disse Kovacevich. J?o francês Michel Beroff, talvez por receio da concorrência, teve uma paralisia da mão direita que o impediu de tocar por muitos anos.
Espécie de João Gilberto da música clássica, ela costuma cancelar concertos em cima da hora. "Não toco quando não tenho vontade", simplifica. Pode ser imprevisível a ponto de, após dar o bolo, sentar-se na platéia e assistir ao concerto de seu substituto. Odeia dar recitais por sentir-se solitária no palco. Nos últimos quinze anos apresentou-se sozinha apenas uma vez, e suas raras aparições são sempre como solista de orquestras ou com amigos como o violinista Gidon Kremer. Martha Argerich iniciou seus estudos musicais em Buenos Aires, aos 5 anos de idade. Ainda menina foi aperfeiçoar-se em Viena, onde tocou para muitos mestres. "De todos, foi com o vienense Friedrich Gulda que mais aprendi", diz Argerich. Aos 16, venceu o concurso Busoni, na Itália, e o de Genebra, dois dos mais importantes do mundo. Estranhamente, nem esses reconhecimentos nem sua fulgurante estréia discográfica fizeram com que a carreira decolasse na ocasião. O lendário pianista Vladimir Horowitz, ao escutar o disco de Martha, ficou tão impressionado que quis ouvi-la pessoalmente. A excitação da adolescente em tocar para o "guru", em Nova York, transformou-se em depressão quando Horowitz cancelou o encontro. Pensou, então, em ser secretária, j?que falava várias línguas, e durante dois anos não abriu o piano. Foi quando conheceu Chen, seu primeiro marido, com quem embarcou para morar na Europa. Em Bruxelas, incentivada pelo professor Stefan Askenase, preparou-se em apenas três meses para o concurso Chopin, em Varsóvia. A conquista do primeiro lugar carimbou definitivamente seu passaporte para o sucesso. Com 24 anos, Martha j?era uma lenda nos círculos pianísticos, mas a modéstia levou-a a procurar os conselhos do italiano Arturo Benedetti Michelangeli. Depois de três aulas, por ciúme ou desequilíbrio, ele a aconselhou a abandonar a música. Anos mais tarde negou ter dado esse conselho e completou, enigmaticamente: "Ensinei-lhe a importância do silêncio na música".
Apesar de vaidosa, o cabelo desalinhado e um vestido preto simples são as marcas registradas de Martha. No palco, parece lançar ao público uma bola de fogo, cegando-o com seu temperamento e carisma. Dispõe de um exército de admiradores, dispostos a tudo para estar a seu lado. Como uma f?americana que s?se veste de preto para identificar-se com a "ídala". ?famosa por suas superstições. Certa vez, antes de um concerto numa igreja em Bruxelas, a pianista passou por uma imagem da Virgem Maria que estava nos bastidores. Nesse momento, uma de suas lentes de contato caiu. Argerich interpretou o fato como um aviso divino, e por pouco o concerto não foi cancelado. Também se recusa a tocar Totentanz (Dança da Morte, em alemão), de Liszt, por achar que não traz boa sorte. A pianista est?totalmente recuperada de um longo e sério problema de saúde. Durante esse período, a Deutsche Grammophon teve o mau gosto de lançar uma coletânea de todas as suas gravações, numa retrospectiva que em geral s?se faz com artistas j?falecidos. Elegantemente, Martha reclamou somente da m?qualidade da foto impressa no álbum.
O CD agora lançado ?obrigatório na prateleira do ouvinte que gosta de emoções fortes. A corrente elétrica que parece emanar da Toccata de Prokofiev e da Rapsódia Húngara N?6, de Liszt, gera uma voltagem musical de alta-tensão. As mãos de Argerich, de tão flexíveis, parecem feitas de borracha. A Barcarole e o Scherzo N?3, de Chopin, produzem um misto de poesia com diabolismo, e o Jeux d'Eau, de Ravel, um verdadeiro caleidoscópio. A Sonata de Liszt, única peça do CD que não integra a gravação de 1960, ?projetada por Martha como um imenso universo emocional. Alguns puritanos criticam o temperamento explosivo da pianista e a conseqüente "indisciplina" de seu toque. Mas ?exatamente essa espontaneidade que permite ao público, durante um concerto ao vivo, entrar em contato com seu próprio mundo mágico. S?assim a música vale a pena.