Artigo
O hino de todos
- Nenhuma obra serviu a tantas ideologias quanto a Nona Sinfonia, de Beethoven
Veja, 1999-06-13
Beethoven: seu único partido era o ódio que nutria contra os nobres |
Quem tocar Beethoven vai para a cadeia! Até 1976, ano que marcou o fim da Revolução Cultural na China, a execução de obras de compositores estrangeiros era crime previsto em lei. Esse absurdo constitui mais uma prova concreta de que, diversamente ao que se pensa, a música pode imantar-se de significados políticos. A manipulação, por diferentes ideologias, de uma das obras mais importantes da literatura musical, a Nona Sinfonia, é o tema do ensaio A Nona de Beethoven, uma História Política, escrito pelo musicólogo argentino Esteban Buch e lançado pela editora francesa Gallimard.
Uma composição, a partir do momento em que é publicada, escapa ao controle de seu criador. Beethoven (1770-1827) já estava completamente surdo quando compôs sua Nona e última sinfonia. Na estréia da obra, em 1824, o bem-comportado público vienense interrompeu a performance, aplaudindo no fim do primeiro movimento. Conta-se que o compositor cochilava em seu camarote e teve de ser acordado para, incrédulo, agradecer a ovação da platéia. Nos 175 anos seguintes, a Nona seria utilizada como símbolo, tanto para o bem como para o mal. Em 1942, a peça foi escolhida por Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, como trilha sonora da superioridade alemã. Um ano depois, em Auschwitz, era cantada, em checo, por um coro de meninos judeus, dessa vez como trilha da esperança.
Os versos originais de Friedrich Schiller exaltavam a liberdade individual e a fraternidade universal |
O final da Nona Sinfonia foi inspirado no poema Ode à Alegria, do dramaturgo alemão Friedrich von Schiller (1759-1805), um dos precursores do romantismo na literatura. A opressão sofrida por Schiller na adolescência acabaria tendo influência em sua obra, repleta de protestos contra a desigualdade social e a corrupção. Nos últimos tempos, o efeito benéfico da Nona vem se materializando, mesmo que ironicamente. Em 1972, transformou-se em hino da Comunidade Européia. "O texto de Schiller foi alterado", lembrou Esteban Buch, em entrevista ao jornal argentino El Clarín, referindo-se à troca da frase "Todos os homens são irmãos" pela afirmação "Todos os europeus são irmãos". O musicólogo alerta ainda para o problema moral, criado pela escolha de Herbert von Karajan, ex-nazista de carteirinha, para fazer os ajustes na parte musical do hino. Na queda do Muro de Berlim, em 1989, a Nona foi a estrela da festa, tendo como coadjuvantes o maestro judeu americano Leonard Bernstein à frente da Filarmônica de Berlim. Pela primeira vez na história e por determinação do regente, o coro e os solistas substituíram, em suas partituras, a palavra "alegria" por "liberdade". A próxima escala da Nona está prevista para o ano 2000, no vilarejo austríaco de Mauthausen, que sediou, durante a II Guerra Mundial, um dos mais atrozes campos de concentração. No comando dessa missão diplomática cicatrizante, estará o regente sir Simon Rattle. É bom lembrar que a ??ustria contribuiu com um número maior de voluntários para a SS nazista que a própria Alemanha. O maestro inglês terá também a grande chance de entrar para a História, caso confirme a audaciosa troca de palavras na Nona, feita por Bernstein. Afinal, tradição em música é a repetição do mesmo "erro" por dois grandes artistas. A Nona destacou-se ainda no cinema ao ser incluída na trilha de Laranja Mecânica (1971). O filme, dirigido pelo americano Stanley Kubrick, é uma adaptação do romance de Anthony Burgess e conta a história de um criminoso cínico que encontra prazer na violência.
Outras músicas eruditas tiveram também utilização política. No século XIX, "Viva Verdi" foi o slogan dos partidários da unificação italiana, numa aparente homenagem ao célebre compositor. Na verdade, a frase era somente um inteligente artifício para expressar "Viva Vittorio Emmanuel Rei da Itália". O famoso coro "Va pensiero", da ópera Nabucco, de Verdi, representa a tristeza dos judeus subjugados pelos babilônios. Com essa mensagem, o compositor conseguiu burlar a censura, camuflando a revolta dos italianos com a ocupação austríaca. Escolhida como uma espécie de hino informal da Itália, "Va pensiero" foi entoada pela torcida da Azzurra na Copa de 90.
Muitos compositores, como Verdi, quiseram manifestar posições político-ideológicas por meio de suas músicas. Mozart, por exemplo, era vinculado à maçonaria em Viena e incluiu várias alusões a essa instituição em sua última ópera, A Flauta Mágica. Hoje em dia, ninguém ouve os trinados de Papageno pensando em lojas maçônicas. A beleza da música de Mozart ofuscou o que expressava o libreto. As idéias de Beethoven, que nunca se filiou a nenhuma corrente, tinham a ver com suas posturas individuais. Ele achava que o valor de um homem estava em seu talento, e não na origem social. Como não era nobre, odiava os nobres enquanto classe. Ficou famosa a passagem em que, em companhia de Goethe, não quis curvar-se ao imperador da ??ustria, enquanto o escritor alemão se desmanchava em mesuras. Beethoven escolheu o poema de Schiller também porque se identificava com a apologia da liberdade individual. Como já se viu, essa intenção original perdeu-se no tempo, de maneira semelhante ao que ocorreu em A Flauta Mágica. Obras-primas como essas perduram mais pela beleza da música do que pelo significado que os autores quiseram lhes dar. É por isso que os demagogos de plantão se apropriam delas com tanta facilidade.