Sinfonia de egos
- A vaidade no mundo erudito, segundo o maestro Lorin Maazel, que está de volta ao Brasil
Veja, 1999-10-03
A maior atração do ano no Brasil no campo da música erudita serão os concertos da Filarmônica de Viena, uma das três melhores do mundo, juntamente com a de Berlim e a de Amsterdã. A orquestra toca na terça-feira no Rio de Janeiro, e na quarta e quinta em São Paulo. Seu regente, o americano Lorin Maazel, de 69 anos, é uma das maiores estrelas do circuito. Ele concedeu a entrevista abaixo a VEJA pouco antes de embarcar para a turnê sul-americana.
Veja - Qual a diferença entre o público de música erudita de trinta anos atrás e o de agora?
Maazel - Aquela platéia de antigamente, que conhecia música de verdade, desapareceu. A causa é óbvia: o sistema educacional nos países do Ocidente relegou a formação musical a segundo plano. Tenho notado, porém, que nos últimos anos surgiu um tipo de público que, preocupado com a falta de valores espirituais da sociedade atual, procura uma direção por intermédio da arte. Acho que as pessoas começaram a perceber que, se uma criança crescer jogando videogames, assistindo a assassinatos pela TV e comendo hambúrgueres no McDonald's, chegará aos 16 anos totalmente aniquilada como ser humano.
Veja - O que determina a escolha de um regente para o cargo de diretor artístico de uma grande orquestra?
Maazel - Antes era experiência, talento para organização e repertório. Hoje, os regentes são escolhidos sobretudo por sua fama. É a fama que traz contratos para gravações, programas de TV, turnês, além de bons salários para os músicos e outras vantagens. O músico não vê mais seu diretor como um guia artístico. Enxerga-o apenas como o sujeito que poderá dar-lhe um aumento de salário.
Veja - Em 1989, seu nome era dado como certo para substituir Herbert von Karajan na Filarmônica de Berlim. O que aconteceu?
Maazel - Na época, deixei claro para os representantes da orquestra que não era candidato. O motivo é simples: boa parte do conjunto que Karajan levara 25 anos para formar estava para aposentar-se, e eu não teria como manter o nível exigido pelo público. Não quis passar por uma situação dessas. Ainda assim, os músicos foram gentis e mantiveram meu nome em sua lista. Quando viram que eu não aceitaria o cargo em hipótese alguma, escolheram outro regente.
Veja - O jornalista inglês Norman Lebrecht escreveu que o senhor, ao perder a eleição para o maestro italiano Claudio Abbado, teria enviado uma carta furiosa aos integrantes da orquestra, cancelando todos os seus contratos futuros com a Filarmônica de Berlim, como regente convidado. É verdade?
Maazel - Todos têm o direito de ganhar a vida. Só que alguns o fazem à custa da fama de outros. Pessoas como o senhor Lebrecht são desprezíveis. Cancelei meus contratos por cavalheirismo. Queria que Abbado tivesse mais tempo de trabalhar com sua orquestra.
Veja - Por que o senhor deixou o cargo de titular da Ópera de Viena depois de somente dois anos?
Maazel - Deixei por causa de um desentendimento com o ministro da Cultura da ??ustria. Sempre fui maravilhosamente recebido pelo público vienense. Para você ter uma idéia, muitos carros da cidade trazem adesivos com a frase "I Love Lorin". É raro esse tipo de demonstração.
Veja - E o que aconteceu com o ministro?
Maazel - Tornou-se prefeito de Viena. Um dia, perdeu três dedos ao abrir uma carta-bomba. Mas não fui eu quem mandou a carta.
Veja - Há luta pelo poder no mundo da música, tal como existe na política?
Maazel - Os que lutam pelo poder são as pessoas anônimas, aquelas que vivem nos bastidores. Os verdadeiros músicos estão mais preocupados com sua arte.
Veja - Qual o regime político ideal para o florescimento da arte?
Maazel - Essa é uma pergunta delicada. Se fizermos um retrospecto, veremos que as artes floresceram mais durante regimes opressores, como o dos faraós do Egito Antigo e o dos príncipes italianos da Renascença. As sociedades democráticas, por seu turno, produziram arte de pouca qualidade. Ao mesmo tempo, não podemos comprometer o futuro tirando lições de um passado equivocado. Creio que a arte sempre encontrará um caminho, não importa o contexto político em que esteja inserida.
Veja - Existe certo ou errado em música? Por exemplo, o que o senhor acha dos especialistas em música antiga que dizem saber como uma peça era executada três séculos atrás?
Maazel - São pessoas ridículas. Como elas podem ter a cara de pau de pontificar sobre como a música de Bach era executada? Bach, tenho certeza, jamais tocava da mesma forma uma peça sua. Além disso, não havia quase nenhum contato entre as cidades de Leipzig e Dresden, onde se ouvia freqüentemente a música desse compositor. Tudo era diferente, até as cordas dos instrumentos. Peguemos como exemplo o gênero big band, que prosperou na década de 40 e cujo maior representante era Glenn Miller. Há dez anos houve uma tentativa de ressuscitar esse tipo de música. O incrível é que, apesar de muitas das pessoas que tocaram nas orquestras de Harry James e Glenn Miller ainda estarem vivas, nenhum desses imitadores da big band conseguiu chegar perto do som que era produzido originalmente. E falamos de somente cinqüenta anos atrás. Como essa gente pode ter a pretensão de, 250 anos depois, dizer que o que fazem é a reprodução exata do que se fazia na época de Bach?
Veja - Reger de cor é importante?
Maazel - Claro. Você já viu algum artista pop cantar com partitura? Ou um ator lendo o texto da peça quando está no palco?
Veja - A exemplo do maestro alemão Carlos Kleiber, o senhor já abandonou um ensaio no meio e foi embora?
Maazel - Todos os regentes, com ou sem justificativa, já fizeram isso uma vez.
Veja - Alguma história curiosa, com ou sem justificativa?
Maazel - Sim, tenho uma. Aconteceu comigo durante uma gravação com um tenor famoso. Cada vez que ele não gostava de algo, ameaçava ir embora e todos corriam atrás dele, implorando: "Por favor, não vá embora, nós precisamos do senhor, agora vamos acertar etc." Depois de isso acontecer vinte vezes em três dias, fiquei irritado. Na vez seguinte em que ele ameaçou ir embora, fiz um sinal para que todos ficassem quietos. O silêncio foi total. Ouviam-se somente seus passos em direção à porta. Ao perceber que havia perdido a batalha, ele voltou. E então eu lhe disse: "Se o senhor quiser ir embora, tudo bem, pode ir". Lívido, o tenor respondeu: "Vamos acabar logo com esta gravação". E essas foram suas últimas palavras em todo o resto da gravação.
Veja - O que o senhor acha das inúmeras piadas sobre a vaidade dos regentes?
Maazel - Há algumas bem engraçadas. Minha favorita é a que conta uma conversa entre um guru, um bispo e um maestro. O guru: "Sou tão poderoso que, quando chego ao culto, todos me chamam de 'mestre'". O padre: "Eu sou mais poderoso ainda. Quando entro na igreja, todos me tratam por 'reverendíssimo senhor'". O maestro: "Ganhei. Quando subo no pódio para reger, os músicos dizem 'Ai, meu Deus!'"
Veja - Se o senhor tivesse um revólver apontado para sua cabeça e tivesse de responder qual é a melhor orquestra do mundo, o que diria?
Maazel - Pode atirar.