Artigo
- Mesmo com as leis de incentivo, o brasileiro paga mais caro para ouvir boa música
Veja, 1999-07-18
Filarmônica de Viena, uma das melhores do mundo: ingressos entre 15 e 110 reais na Escócia | Sinfônica da RAI, que pertence ao segundo time: paulistanos tiveram de gastar entre 100 e 190 reais |
Neste verão, no Hemisfério Norte, o sol de muitos europeus brilhará em recintos fechados, como nas salas de concerto da simpática cidade de Edimburgo, na Escócia, onde se realiza um celebrado festival de artes. Proclamado pelo jornal inglês The Sunday Times como "o melhor do mundo", o evento será anfitrião de grandes atrações, entre as quais a Orquestra Filarmônica de Viena, regida por sir Simon Rattle. Por essa degustação musical sofisticada, o turista cultural pagará 110 reais. No início deste mês, os brasileiros desembolsaram 190 reais para ouvir, no Teatro Cultura Artística, em São Paulo, a Orquestra Sinfônica da Rádio e Televisão Italiana, que, comparada à orquestra vienense, não passa de um simples sanduíche de mortadela. E, se ainda levarmos em conta a relação entre o poder aquisitivo verde-amarelo e o britânico, chegaremos à conclusão de que os brasileiros pagaram, por um lanche de padaria, mais de sete vezes a quantia gasta pelos europeus para consumir um menu gastronômico.
Para um casal da classe média, a idéia de gastar 400 reais numa única noite cultural é simplesmente inconcebível. Em Londres, uma das cidades mais caras do mundo, o mesmo casal pagaria 180 reais para ouvir, no melhor lugar do Royal Festival Hall, um concerto com uma das melhores orquestras do planeta. "Se você quiser um vinho francês, também vai ter de pagar caro", sentencia Gerald Perret, diretor da Sociedade de Cultura Artística. A tese de Perret esquece que nem todos os vinhos franceses são bons e tampouco têm o mesmo preço. Em outubro, o palco da recém-inaugurada Sala São Paulo será alugado pela Cultura Artística para hospedar a mesma Orquestra Filarmônica de Viena, estrela do Festival de Edimburgo. Apesar de faltar três meses para o acontecimento, o preço do ingresso ainda não foi divulgado. Mas quem quiser beber desse champanhe de primeira deve começar a encher seu "cofre-porquinho" desde já.
A arte, como produto de consumo, é hoje realidade. A cristalização desse conceito ocorreu definitivamente com o desabamento da Cortina de Ferro, onde os governos subsidiavam integralmente as artes. Na Europa e nos Estados Unidos, a ajuda do Estado à cultura tem diminuído consideravelmente. Com isso, o ônus do desenvolvimento cultural da sociedade recai sobre os ombros da iniciativa privada, sob a forma de patrocínio. Nos países ricos, o incentivo oferecido às empresas patrocinadoras de cultura é limitado. Elas podem, no máximo, deduzir como despesa o gasto feito. Com um lucro menor, o imposto final também será menor. No Brasil, a cultura ainda é bancada pelo governo, mesmo que de forma indireta. Em vez de a iniciativa privada pagar o imposto diretamente ao Estado, ela o repassa a projetos da área cultural, por meio de diversas leis de incentivo, que podem ser federais, estaduais ou municipais. A principal delas, a Lei Rouanet, permite que uma empresa patrocinadora tenha um abatimento de até 4% no imposto de renda devido. Em outras palavras, a empresa não gasta um tostão e ainda recebe, como bônus, publicidade gratuita. Em última análise, esses recursos são provenientes da classe média, principal geradora de impostos do país. Então, por uma questão de justiça, esses brasileiros, que são os que carregam o país nas costas, deveriam ser os grandes beneficiados pela política cultural oficial. Mas nem sempre isso acontece.
Cuíca e pandeiro – Numa sociedade democrática, o lucro não é pecado. Teoricamente, nada impede que um empresário resolva correr o risco de apresentar, no Estádio do Morumbi, um duo de cuíca e pandeiro, cobrando 1.000 reais pela entrada. Mas, se esse mesmo espetáculo utilizar, por exemplo, os benefícios da Lei Rouanet e da Lei Mendonça (que permite que o contribuinte paulista do IPTU e do ISS abata até 70% do valor do patrocínio), toda a renda proveniente da bilheteria irá para seu bolso, já que as despesas com a organização do evento teriam sido cobertas. Ou seja, o empresário não teria nenhum risco. O Ministério da Cultura dispõe de pessoas competentes para o julgamento dos projetos apresentados e a lei tem muitos méritos, que, entretanto, só se tornarão indiscutíveis se seu objetivo social for alcançado. Apesar de a prestação de contas ser compulsória, não existe nenhum mecanismo legal que garanta ao brasileiro, aquele que não tem condições de tomar vinho francês, a possibilidade de acesso aos espetáculos, por meio do controle de preço dos ingressos. Se um limite não for estabelecido, a classe média corre o risco de não poder assistir a eventos pagos por ela mesma. Seria igualmente saudável que a receita dos mesmos se tornasse pública e transparente. "Não podemos divulgar números", respondeu o diretor da Cultura Artística, ao ser questionado sobre o cachê pago à orquestra italiana. Ao mesmo tempo, não pediu segredo ao confirmar que "usamos a Lei Rouanet para todos os concertos".
A injusta distribuição de renda no Brasil não é novidade. Mas tentar repassar à classe média a responsabilidade pelo desenvolvimento cultural da classe privilegiada também já é exagero.