Garoto mimado
- O russo Evgeny Kissin é o novo prodígio do piano
Veja, 1998-10-04
Ele é pálido como a morte, raramente sorri e vive ferozmente protegido pela mãe e pela professora. Trata-se do pianista russo Evgeny Kissin, 27 anos, de quem está sendo lançado no Brasil, pelo selo BMG, um CD extraordinário, com peças de Beethoven, César Franck e Brahms. Kissin é a maior estrela do teclado na atualidade. Nas locadoras brasileiras há mais vídeos desse garoto bem-comportado do que de qualquer outro artista da música erudita. Conta-se que, bem criança, Kissin era capaz de cantar uma fuga inteira de Bach. Aos 2 anos, iniciou os estudos de piano. Aos 12, executou os dois concertos para piano e orquestra de Chopin, acompanhado pela Orquestra Filarmônica de Moscou, sob a regência do maestro Dmitri Kitaenko. O acontecimento, gravado ao vivo pela RCA, transformou-o imediatamente numa atração internacional.
Beethoven (1770-1827) ficaria furioso se soubesse que sua Sonata Quase uma Fantasia foi rebatizada de Sonata ao Luar. O "delito", ocorrido dez anos após a morte do compositor, foi perpetrado pela imaginação do crítico alemão Heinrich Rellstab, que associou o início da famosa peça à imagem de um barquinho navegando no lago de Lucerna, numa noite de lua cheia. A concepção de Kissin é mais do que convincente — além da fidelidade ao texto, ele imprime à obra um cunho pessoal. O Prelúdio, Coral e Fuga, do compositor e organista belga César-Auguste Franck (1822-1890), é executado com incomum refinamento. Mas é nos dois volumes das Variações sobre um Tema de Paganini, do compositor alemão Johannes Brahms (1833-1897), que a genialidade do artista brota de maneira fulgurante. Essa partitura, um dos maiores desafios da literatura romântica, é capaz de tirar o sono de qualquer pianista que se preze. A precisão técnica de Kissin, sempre a serviço de uma musicalidade de tirar o fôlego, é quase inumana. Ninguém poderia imaginar que a gravação dessas Variações, feita pelo italiano Arturo Benedetti Michelangeli para a EMI, em 1948, pudesse ser superada. Em música, gosto se discute e Kissin, no mínimo, empatou o jogo. O som do piano poderia ser menos agressivo e reverberante, mas esse detalhe em nada altera o formidável resultado artístico do CD.
Kissin parece viver num outro mundo. "Quando atinge um clímax musical e balança a cabeça, seu cabelo lembra o de Elsa Lanchester no filme A Noiva de Frankenstein (1935)", escreveu o crítico Richard Dyer, do jornal americano Boston Globe. "Eu não permito que problemas pessoais interfiram na minha música", diz Kissin, cuja vida gira exclusivamente em torno do piano. Como pode o artista isolar sua pessoa "jurídica" da "física"? Um mistério.