Punk erudito
- O violinista inglês Nigel Kennedy volta a chocar os puristas ao gravar Jimi Hendrix
Veja, 1999-09-05
"O violinista Nigel Kennedy é um drogado, bêbado, que vomita em quartos de hotéis, trata seus empregados como escravos e vive no meio de tanta sujeira que lesmas caminham pelas paredes de sua cozinha." Essas acusações, publicadas no mês passado pelo tablóide londrino Daily Mail, foram feitas por Emma Jones, uma ex-secretária de Kennedy. "Sou grato por qualquer contribuição que divulgue meu trabalho", respondeu o músico, bem-humorado. Na verdade, o episódio acabou ajudando a publicidade em torno do lançamento do último disco desse enfant terrible da música erudita, pelo selo Sony. Recém-chegado às prateleiras brasileiras, The Kennedy Experience representa mais uma diabrura musical do violinista britânico de 43 anos. Chocando os puristas, Kennedy pega carona no repertório e no universo mágico do célebre guitarrista americano Jimi Hendrix, morto em 1970.
Nascido em Brighton, Kennedy estudou na famosa escola inglesa para crianças superdotadas fundada pelo violinista Yehudi Menuhin e aperfeiçoou-se na Juilliard School of Music, em Nova York. O incentivo de outro violinista, o francês Stephane Grappelli, foi fundamental para suas incursões no mundo do jazz e do rock. "Grappelli me deu a esperança de sobreviver do violino, sem ter necessariamente de tocar numa orquestra. Descobri que fazer música pode ser algo divertido e, ainda, que posso ser pago por isso", afirmou. Aos 21 anos, Kennedy estreava em Londres como solista da Philharmonia Orchestra, regida por Riccardo Muti. A grande virada profissional aconteceu em 1989, quando a EMI investiu pesadamente em sua imagem punk. O resultado foi inacreditável: Kennedy vendeu 2 milhões de cópias das Quatro Estações, de Vivaldi. Nascia assim um novo ícone dos jovens, cujas gravações conquistaram o coração dos críticos ingleses. Entre as melhores, está a do Concerto para Violino e Orquestra, de Elgar, acompanhado pela Orquestra de Birmingham, sob a regência de sir Simon Rattle. Enquanto o jornal The Daily Telegraph publicava que "ele é um violinista em 1 milhão", The Times se derramava afirmando que somente um violinista inglês, como Kennedy, poderia ser tão audacioso. O exagero do nacionalismo britânico é compreensível, se levarmos em consideração o fato de a Inglaterra jamais ter produzido um violinista de prestígio internacional. Nigel levou os elogios tão a sério que, aos 35 anos, já escrevia a autobiografia.
"As pessoas podem dizer, se quiserem, que sou um violinista clássico. Mas eu me considero um artista que faz música e não somente parte dela", disse Kennedy, ao embarcar no projeto The Kennedy Experience. O nome é uma homenagem ao trio The Jimi Hendrix Experience, formado em 1966 por Hendrix, o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell. Refinamento e ingenuidade caminham de mãos dadas nesse CD, que mais parece uma colcha de retalhos musical. Os excelentes instrumentistas, por meio de experiências sonoras nem sempre felizes, alternam momentos de alta tensão musical e rítmica com tramas harmônicas e melódicas que beiram o amadorismo. O caos do mundo hendrixiano foi magnificamente capturado na alucinante Purple Haze, um dos melhores momentos do CD. Esse não é um disco para quem gosta somente de música clássica, mas sobretudo para os interessados na discussão sobre o destino da música, seja ela clássica ou popular.
Numa sociedade com muita informação e, paradoxalmente, pouco autocrítica, o popular parece confundir-se com o clássico. Não é crime um grande cantor lírico usar esporadicamente o Sole Mio para engordar sua conta bancária. O problema só existe quando a qualidade artística desaba. É o caso de muitos instrumentistas e cantores de segunda, explorados por cafetões culturais e endeusados pela mídia. Quem são eles? A violinista cingapuriana Vanessa Mae é um exemplo clássico: pernas bonitas e técnica medíocre. Se perguntarmos a um adolescente quem é o melhor violinista do mundo, a resposta será certamente Vanessa Mae, e não o israelense Itzhak Perlman. Isso porque Vanessa já esteve no Domingão do Faustão. Itzhak, não.