Fera das cordas
- O violinista americano Joshua Bell mostra seu virtuosismo em cardápio romântico
Veja, 1997-02-15
O violinista americano Joshua Bell, de 30 anos, talvez encontre no russo Maxim Vengerov um dos poucos rivais à sua altura. Na ala feminina, o pódio é disputado pelos fenômenos Midori e Sarah Chang. Os quatro representam as maiores novidades do mundo violinístico neste final de século. Aos 14 anos, Bell tocava com a Orquestra da Filadélfia regida por Riccardo Muti, atual diretor do Scala de Milão. Ao ouvi-lo, o crítico do New York Times Harold Schonberg comparou-o ao também americano Yehudi Menuhin quando jovem. Moral da história: a gravadora Decca resolveu investir no futuro musical do adolescente e na imagem do garotão de t-Shirt, movido a comida natural. Deu certo.
Nesta semana aterrissa nas prateleiras verde-amarelas mais um CD desse grande talento. No menu, concertos românticos para violino e orquestra. Como entrada, o do compositor americano Samuel Barber, e, prato principal, o do músico inglês William Walton. De sobremesa, uma suíte sobre temas judaicos do suíço Ernest Bloch. O acompanhamento é da Orquestra Sinfônica de Baltimore sob a regência de David Zinman.
Em julho de 1921, o compositor austríaco Arnold Schoenberg disse a um aluno: "Hoje descobri algo que vai assegurar a supremacia da música alemã pelos próxi-mos 100 anos". Nascia o dodecafonismo, técnica de composição baseada na utilização de todos os doze sons da escala que acabava com a noção de tonalidade. O romantismo, que já agonizava, tinha assim sua morte decretada. Todas as peças do novo CD de Joshua Bell, escritas no final dos anos 30, representam uma sobrevida do lirismo musical do século XIX.
Samuel Barber (1910-1981) sempre confundiu a crítica. Não se ateve a nenhum estilo e jamais tomou partido em discussões do tipo Schoenberg versus Stravinsky. Isso lhe valeu o rótulo de neo-romântico - expressão que não quer dizer muito - além da acusação de retrógrado e vulgar. O criador do famoso Adagio para Cordas, que na verdade é um dos movimentos de seu quarteto, destacou-se como importante melodista. Seu concerto para violino, de 1939, é uma obra de transição. A partir daí, adotou uma linguagem mais moderna, sem nunca perder a veia poética. Com toque apaixonado, Joshua imprime sua forte personalidade aos dois primeiros movimentos. A sonoridade do seu Stradivarius, apelidado de Tom Taylor, safra 1732, é encorpada e doce. No moto perpétuo, o virtuosismo de Bell é complementado pela energia do maestro David Zinman à frente da Sinfônica de Baltimore.
Pouca gente lembra que o filme Ricardo III, de 1955, estrelado e dirigido por sir Lawrence Olivier, teve sua trilha sonora assinada pelo também sir William Walton (1902-1983). Dezesseis anos antes, seu concerto para violino estreava em Cleveland. Sabendo que o solista para a ocasião seria Jasha Heifetz, simplesmente o maior de todos, Walton caprichou nas dificuldades. O próprio Heifetz acabaria gravando duas versões históricas dessa peça, em 1941 e 1951, ambas pelo selo RCA. Sir William aproveitou a chance para homenagear a Itália, país que amava e onde viveu, com um presto capriccioso alla napoletana. A obra também sofreu forte influência de Sergei Prokofiev. O tema do vivace, por exemplo, contém clara referência ao terceiro concerto para piano do compositor russo. Em toda a peça de William Walton, Joshua Bell demonstra competência técnica e musical, justificando plenamente a posição que ocupa no primeiro time de sua geração. Mais uma vez o regente David Zinman revela sua dimensão de excelente músico e mestre na difícil arte de acompanhar.
Ernest Bloch (1880-1959), aluno do lendário violinista Eugene Ysaye, chegou aos Estados Unidos pobre e desconhecido, aos 36 anos. Dedicou a maior parte de sua produção à cultura judaica. Em 1939, com a ameaça do nazismo, Bloch transcreveu para violino e orquestra a suíte Baal Shem, escrita originalmente com acompanhamento de piano. A peça homenageia Baal Shem Tov, que no século XVIII fundou o hassidismo, movimento que pregava a aproximação com Deus por meio da música. A interpretação de Joshua Bell é um prato cheio: seu violino chora, lamenta, canta e dança.
Quanto à gravação, não faria mal um pouco mais de brilho ao violino solista, transparência à orquestra e equilíbrio entre cordas e sopros. Do ponto de vista musical, haveria mais coerência se a ordem dos compositores apresentados fosse Barber, Walton e Bloch. Por que "serviram" Bloch antes de Walton?
A sobremesa virou sorbet.