- Quem são os favoritos na corrida pelo pódio da Filarmônica de Berlim
Veja, 1999-04-04
Três grandes regentes conversavam. "Deus declarou que eu sou o maior do mundo", disse o primeiro. "Não é verdade. Ontem, quando falamos por telefone, Ele reafirmou que sou eu o maior", respondeu o segundo. Com ar de surpresa, o terceiro perguntou: "Eu falei isso ?" A piada ilustra à perfeição um dos mais importantes páreos do mundo musical. O maestro italiano Claudio Abbado, titular da Orquestra Filarmônica de Berlim, a melhor do planeta, acaba de anunciar sua saída, em 2002. Ser inquilino do pódio dessa orquestra é o mesmo que, na política, morar na Casa Branca. Com direito a Monica Lewinsky e tudo o mais. A acirrada corrida para a sucessão de Abbado, apesar de silenciosa, já começou.
Quando uma criança inicia seus estudos musicais, normalmente elege um instrumento, sem pensar na possibilidade de tornar-se regente. O que leva alguém a optar pela batuta? Bem, talvez só Freud possa explicar – afinal, reger é subordinar. O maestro italiano Arturo Toscanini (1867-1957), "pai" do comportamento da maioria dos regentes deste século, é prova disso. "Ele era incapaz de amar", diz um ex-colaborador, ao lembrar da educação severa recebida pelo músico. A arte de Toscanini jamais foi colocada em questão, ainda que associada a uma lendária crueldade. Uma vez, com a ajuda de colegas de conservatório, matou, cozinhou e comeu o gato de um professor que detestava. Toscanini foi o ídolo da infância de outro regente, o austríaco Herbert von Karajan (1908-1989). No final da II Guerra Mundial, Karajan era procurado pelas tropas aliadas, por ter sido protegido de Goebbels, ministro da Propaganda nazista. Ironicamente, seu nome foi removido da lista negra pelo inglês Walter Legge, produtor de discos da EMI. Em 1945, mudou-se para Londres, sob a condição de não se apresentar publicamente. Ainda assim, gravou mais de 150 discos. "Serei um ditador", proclamou, em 1955, ao assumir a Orquestra Filarmônica de Berlim. Além de músico mais poderoso do século, Karajan foi também o mais bem pago. Convencido de sua eternidade, morreu deixando uma fortuna de 225 milhões de dólares e centenas de gravações. Na realidade, sua arte é que foi imortalizada. Aos pobres regentes, restou como herança a orquestra mais ambicionada do mundo.
Os maestros Lorin Maazel, James Levine e Riccardo Muti eram considerados "barbadas" para suceder a Karajan em 1989. Certo de sua indicação, o americano Maazel marcou uma entrevista coletiva para o dia da decisão. Muti tingiu as mechas para a ocasião. Cansados de longa ditadura, a direção e os músicos da filarmônica optaram por Claudio Abbado, ex-comunista e defensor dos direitos humanos. Muti ficou devastado e, até hoje, não consegue balbuciar a palavra Abbado.
Com a partida do regente italiano, em 2002, as apostas para a nova sucessão indicam o inglês Simon Rattle como grande favorito. Menina dos olhos dos ingleses, sir Simon transformou a provinciana Orquestra de Birmingham em uma das melhores da Inglaterra, tendo recusado convites para assumir as orquestras de Nova York e de Cleveland. Formado em literatura por Oxford, Rattle é presença constante em Berlim. Tem contrato exclusivo com a mesma EMI de Karajan e abocanhou todos os prêmios possíveis. O repertório do século XX é um de seus principais cavalos de batalha. "Mariss Jansons é o único que pode fazer sombra a Rattle", diz um importante empresário. Em 1988, Jansons, natural da Letônia, tinha tudo para suceder ao grande Mravinsky na Filarmônica de São Petersburgo. Mas acabou derrotado por Iuri Temirkanov, o queridinho do partido. A exemplo de Rattle, Jansons fez da Filarmônica de Oslo uma orquestra de primeira e também virou herói. Maravilhoso músico e bom colega, é um dos preferidos dos berlinenses.
Em 1960, o argentino naturalizado israelense Daniel Barenboim foi responsável pela organização de um grupo de brilhantes músicos judeus, cujo objetivo era a ajuda mútua. A confraria, da qual excepcionalmente fazia parte o regente indiano Zubin Mehta, recebeu o divertido apelido de "kosher nostra", numa clara referência à Máfia siciliana. Há quem aposte que Barenboim, detentor de um cérebro privilegiado, será o azarão da corrida à Filarmônica de Berlim e vencerá por uma cabeça de vantagem. Quanto a Zubin Mehta, adorado por quatro entre cinco senhoras do jet set, a história é outra. Informações de cocheira revelam que o indiano não leva a taça de jeito nenhum. Riccardo Muti tem pouquíssimas chances. Se houvesse um prêmio especial para o "regente mais odiado", ele seria o contemplado. Lorin Maazel também pode tirar o cavalinho da chuva. O alemão Christian Thielemann corre por fora e pode ser outro azarão do páreo. Nacionalista, andou dando declarações polêmicas sobre a História recente de seu país. Para ganhar, terá de contar com a ferradura da sorte e os antolhos da humanidade.
Pouca gente conhece o alemão Carlos Kleiber, o melhor regente do mundo e último dos excêntricos autênticos, que se divertem em rasgar dinheiro. Intelectual e recluso, Kleiber é venerado por todos. "Nunca ouvi nada igual em minha vida", disse o competente maestro Riccardo Chailly, depois de assistir a uma ópera dirigida por Kleiber. Ele rege pouco e são muitas as lendas criadas a seu respeito. Antes de um ensaio com uma orquestra italiana, subiu ao pódio e disparou: "Vocês são um bando de imbecis!" E foi embora. Perfeccionista, exigiu 34 ensaios para reger a ópera Wozzeck, de Alban Berg. Sua versão da 5ª Sinfonia, de Beethoven, é imbatível. Ao ser convidado por Karajan para reger a filarmônica, Kleiber respondeu: "Obrigado, eu só rejo quando estou com fome". A orquestra não tem a menor chance de tê-lo como titular, até porque Kleiber quase não come. O candidato ideal para a Filarmônica de Berlim terá de ser um diplomata capaz de mandar qualquer pessoa para o inferno. E que ela não veja a hora de embarcar.
Simon Rattle
Nacionalidade: inglesa
Posto atual: nenhum
A favor: é jovem (44 anos), tem carisma e é endeusado pela crítica
Contra: seu repertório é ousado demais para uma orquestra tradicional como a de Berlim
Cotação: é o grande favorito
Daniel Barenboim
Nacionalidade: argentina, naturalizado israelense
Posto atual: Sinfônica de Chicago
A favor: é bom de marketing e tem um poderoso lobby a seu favor
Contra: pode ser chato ou frio como um peixe
Cotação: azarão
Lorin Maazel
Nacionalidade: americana
Posto atual: Orquestra da Rádio da Baviera
A favor: experiente, passou por algumas das melhores orquestras do mundo. É capaz de pisar no pescoço da mãe para conseguir o posto
Contra: sua hora parece ter passado. Na última eleição, perdeu a disputa para Claudio Abbado
Cotação: só leva se envenenar os concorrentes, o que não é impossível
Mariss Jansons
Nacionalidade: letã
Posto atual: Orquestra Sinfônica de Pittsburgh (Estados Unidos) e Filarmônica de Oslo (Noruega)
A favor: ótimo músico, é um dos preferidos dos berlinenses
Contra: discreto, é fraco de marketing, o que é fatal para um regente
Cotação: tem boas chances
Riccardo Muti
Nacionalidade: italiana
Posto atual: Orquestra do Alla Scala de Milão
A favor: é bom em óperas. Vaidoso como convém a um regente, cuida da própria cabeleira como se fosse uma miss
Contra: é considerado peçonhento demais até para os padrões do serpentário dos maestros
Cotação: pouquíssimas chances
Zubin Mehta
Nacionalidade: indiana
Posto atual: Filarmônica de Israel
A favor: tem uma técnica impecável e é um acompanhador maravilhoso quando toca com solista
Contra: seu repertório é popularesco demais. É o regente dos "três tenores" e especialista em Aquarela do Brasil
Cotação: zebra. Teria mais chances na Broadway